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O interesse fitoterápico no Brasil: colônia e império

A importância da natureza brasileira na manutenção da sobrevivência de europeus, índios e mestiços nos períodos da colônia e do império no Brasil.

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RESUMO

Este trabalho de conclusão de curso buscará comprovar a importância da natureza brasileira na manutenção da sobrevivência de europeus, índios e mestiços nos períodos da colônia e do império no Brasil. O objetivo e esclarecer aos leitores que parte dos conhecimentos fitoterápicos obtidos pelos peninsulares e primeiros brasileiros, se deram por meio da sondagem que estes fizeram das práticas desenvolvidas pelos nativos que, lançavam mão da natureza não só para alimentar-se, mas também para tratar suas enfermidades.

Palavras-Chave: Brasil Colônia, Brasil Império, Fitoterapia, História da Ciência.

INTRODUÇÃO

É ainda no período histórico da antiguidade que se encontram indicações da utilização das plantas no combate as enfermidades. A Fitoterapia como é conhecida essa prática, encontra referências em sociedades clássicas antigas como Grécia e Roma. Com o passar do tempo a experiência possibilitou ao homem aperfeiçoar e desenvolver cada vez mais esses conhecimentos. Os saberes vindos da natureza foram associados a rezas, ritos, posição dos astros celestes e outras ações.

O choque cultural resultante do descobrimento de um novo continente, habitado por ameríndios em meados do século XVI, possibilitou aos europeus o contato com uma nova gama de espécies da fauna e flora. Os peninsulares que aqui chegaram foram tomados por um grande êxtase. Alguns desbravadores inclusive acreditaram ter chegado ao Éden terreno. O impacto causado por tal choque suscitou nos europeus grande anseio por deter os conhecimentos das riquezas naturais até então desconhecidas.

Os índios brasileiros desenvolveram o conhecimento das funções terapêuticas das plantas. Dominavam esses saberes sobre às mais variadas espécies vegetais e suas propriedades medicinais ainda em tempos anteriores a chegada dos desbravadores. Os nativos foram responsáveis por “ensinar” aos “brancos” a melhor forma de utilizar os vegetais, afirma Marques:

tanto os portugueses quanto os holandeses foram atentamente orientados pelos conhecimentos dos habitantes da terra do pau-brasil. Sim, pois foram os índios, com seus saberes sobre a natureza, que indicaram aos colonizadores as novas plantas que poderiam servir de alimento e remédio.[4]

O objetivo do presente trabalho é apresentar esses saberes que despertaram o interesse dos europeus, serão utilizados para tanto crônicas e documentos escritos por brasileiros e estrangeiros no período colonial e imperial. Buscando compreender dessa forma a importância de tal conhecimento sobre as crenças e práticas de cura europeia e ameríndias, bem como, suas ligações com a ciência e a medicina “erudita” daquela época.

Nos dias atuais, em tempos de grandes inovações nas áreas da ciência, tecnologia, pesquisa e medicina; muitos cientistas concordam que parte dos tratamentos e curas para diversas doenças podem estar disponíveis na natureza. É comum em nosso dia a dia encontrarmos vários medicamentos laboratoriais de uso clínico cuja composição conta com propriedades de organismos vegetais.

Tendo por objetivo a manutenção da boa saúde, muitos dos primeiros brasileiros viram-se forçados a lançar mão do uso de plantas com propriedades que acreditavam serem medicinais, até porque a colônia portuguesa não dispunha de um corpo médico tão presente e eficiente como a metrópole.

Vera Regina Beltrão Marques afirma que no Brasil daquele tempo, as práticas de cura, sejam as eruditas ou as populares, encontravam suas formulações na natureza. Cita a descrição que o jesuíta José de Anchieta faz em relação ao óleo de Copaíba, recomendando a substância para o tratamento de feridas que, cicatrizando-as não deixavam sequer sinal[5]. Cristina Gurgel também argumenta que os benefícios desse mesmo óleo estariam em sua função cicatrizante e analgésica, a autora cita ainda o testemunho de Pero de Magalhães Gândavo a esse respeito[6]. É possível constatar portanto, uma tradição do uso medicinal das plantas no Brasil desde os primeiros séculos. O que certamente denota um costume inserido no interior de um processo de longa duração.

O INTERESSE PELA CURA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Foram constatados na civilização do Egito Antigo, mediante achados arqueológicos e outros documentos, grande número de vegetais empregados na composição de poções, cuja finalidade era combater diversas enfermidades. Um exemplo é o documento conhecido como Papiro de Ebers, cuja datação é de aproximadamente 1500 a.c. Nesse documento, observa-se a indicação de quase duas centenas de plantas com finalidades curativas. Os egípcios além de utilizarem as plantas para a manutenção da saúde, empregavam também óleos vegetais e minerais dentre outros ingredientes, nos procedimentos para embalsamar cadáveres.

Gimenez afirma que para evitar a decomposição dos corpos os egípcios tratavam seus mortos com um sal mineral facilmente encontrado no território daquele país africano. Ressalta que algumas substâncias utilizadas pela medicina hoje, já eram conhecidas por aqueles que habitaram o Egito Antigo. Como exemplos cita o óleo de rícino, ácido acetilsalicílico, própolis para cicatrização e anestésicos a base de ópio; além de outros resultantes da mistura de pó de mármore com vinagre. As mulheres egípcias que não desejavam engravidar, utilizavam emplastros espermicidas compostos de acácia, tâmara e mel. Aquelas que engravidam com intuito de confirmarem a gestação, urinavam em recipientes onde dentro encontrava-se uma espécie de cevada que caso florescesse, seria a resposta positiva para o exame[7].

Ao expor algumas indicações contidas no Papiro de Ebers, Gimenez evidencia a relevância do tratado para a saúde dos primeiros egípcios. São descritos procedimentos para engessamento de ossos quebrados, cirurgias e ainda o funcionamento do sistema circulatório no corpo humano. O papiro inclusive orienta que para avaliação da saúde do músculo cardíaco, deveria-se obter a pulsação do mesmo órgão na região do pescoço ou punho, pulso carotídeo e radial respectivamente, procedimento que ainda hoje é utilizado por profissionais de saúde.

A prática de utilizar a natureza como fonte de cura para tratar enfermidades é perceptível também nas teorias de Hipócrates de Cós e Galeno de Pérgamo. A medicina hipocrática, com influências marcantes nas teorias de Aristóteles, preconizava a correspondência entre a ordem do cosmo e o equilíbrio do organismo. A doença neste caso, seria expressa pelo descompasso entre meio interno (organismo) e meio externo (ambiente) ocasionando um desequilíbrio humoral. A terapêutica hipocrática portanto consistia na reconstituição desses humores (líquido ou fluído como o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra).

a recuperação do enfermo acompanha-se da eliminação do humor excedente ou alterado. O médico pode auxiliar as forças curativas da natureza retirando do corpo o humor em excesso ou defeituoso, a fim de restaurar o equilíbrio. Com esta finalidade, surgiram os quatro principais métodos terapêuticos: sangria, purgativos, eméticos e clisteres.[8]

No final do século XV, os habitantes do velho mundo que ainda utilizavam práticas e conhecimentos de cura construídos na antiguidade, passaram a alimentar grandes expectativas em relação às riquezas naturais presentes na América, pois como afirma Ribeiro:

no imaginário da época, o criador fora prodigioso com a colônia, pois, adicionalmente às terras férteis, metais e pedras preciosas, teria lhe conferido produtos medicinais muitas vezes superiores àqueles vindos da Europa.[9]

Acreditava-se que neste novo mundo poderiam ser encontrados remédios para as enfermidades que a muito tempo assolavam o velho continente. Isso ficou claro quando o próprio Cristóvão Colombo, durante sua viagem à América, relata em seu diário de bordo, a existência de uma árvore indicada por um nativo com propriedades que, pensava-se à época, eram medicinais. Colombo ainda ressaltou que a madeira da árvore poderia ter também uma utilização comercial. Escreve o navegador:

e estando assim, veio o contramestre da “Niña” pedir alvíssaras ao almirante por haver encontrado Aroeira, só que não trazia muda porque tinha perdido no caminho. Prometeu-a ao almirante e enviou Rodrigo Sanches e Mestre Diego até às árvores, e eles voltaram com algumas, que o Almirante guardou para levar aos monarcas, junto com um pedaço de tronco. Diz que encontrou muito daquela madeira que lhe pareceu ser aloés. E que um índio falou, por meio de gestos, que a Aroeira é boa para dores de estômago.[10]

No Brasil a aparência saudável dos nativos impactou os europeus quando aqui chegaram, Pero Vaz de Caminha diante do inédito cenário, escreveu ao rei de Portugal Dom Manuel, o Venturoso:

eles não lavram nem criam. Nem mesmo há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado a viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes que comemos.[11]

Caminha reconheceu na dieta dos nativos a fonte do notável bem estar apresentado por eles, contudo, mesmo admitindo o consumo de legumes e cereais por parte dos europeus, afirma que os alimentos naturais do novo mundo são mais benéficos ao homem se comparados aos alimentos provenientes do velho continente.

Apesar do grande interesse demonstrado por alguns europeus no tocante à natureza americana, a coroa portuguesa procurou restringir ao máximo a divulgação e as pesquisas referentes a essas riquezas. Em um primeiro momento houveram interessados em relatar e descrever os animais, minerais e vegetais aqui encontrados porém, tais empreendimentos ocorreram por iniciativas próprias de muitos viajantes, curiosos, aventureiros e outros que, sem apoio financeiro e logístico do poder imperial, realizaram verdadeiras expedições com o objetivo de coletar informações pertinentes aos três reinos da natureza brasileira: “O Brasil com sua natureza exótica e pouco conhecida, era um tesouro encoberto que poderia gerar muitas riquezas ao reino”.[12]

Os Jesuítas também estudaram a natureza americana e praticaram a arte de curar aprendida com os índios: “sob indicação indígena, os jesuítas cultivaram, ou colheram nas florestas as plantas medicinais nativas”[13]. Esses missionários, vindos do velho continente com o objetivo de “frear” o progresso e a propagação das doutrinas de fé protestantes, acabaram se tornando grandes observadores do novo mundo colonial, contribuindo com seus escritos e descrições para a memória a respeito não só da flora brasileira, mas também dos hábitos e costumes dos ameríndios; além de outras características locais como a fauna, o clima e o relevo: “apesar da influência nociva que exerceram junto as culturas nativas, foram eles os maiores responsáveis pela preservação de muitos de seus hábitos e conhecimentos.”[14]

A esse respeito escreveu Sigaud:

na época da descoberta do Brasil, só existiam certas práticas é uma rotina baseada nas virtudes das plantas. Hans Staden, Gândavo, e Nicolas Federman observaram o que praticam os índios, quando entregues a si mesmos, no tratamento de doenças; a tradição, conservada pelos anciãos, chamou a atenção dos jesuítas em 1549; esses reverendos padres, desde o princípio do seu estabelecimento, se aplicaram em recolher e estudar as produções locais e em tirar proveito dos conhecimentos e da observação dos índios.[15]

Atendendo ao apelo humanístico de amor e serviço ao próximo os jesuítas acabaram não só desempenhando o papel de catequistas, objetivo principal da ordem religiosa a que pertenciam, mas incorporaram nessa mesma organização um caráter assistencialista no tocante aos cuidados com os enfermos e à manutenção da saúde dos silvícolas. Esses religiosos manipulavam receitas de remédios e garrafadas com substâncias naturais. Nos colégios da ordem que construíram Brasil afora formaram verdadeiros laboratórios para a manipulação de suas receitas fitoterápicas, conforme afirma Daniela Buono Calainho:

as boticas dos colégios jesuítas foram inigualáveis, em qualquer parte onde estivessem. A do Colégio do Pará, segundo inventário datado de 1760, além de 20 tomos de medicina, continha recipientes diversos, estantes com mais de 400 remédios, fornalhas, alambiques, almofarizes de mármore, ferro e marfim, armários, frascos e potes de várias cores e tamanhos, balanças, pesos, medidas, tachos de cobre, de barro, bacias, prensas, tenazes, enfim todo um aparato técnico para a confecção dos medicamentos.[16]

Calainho (2005) expõe que a escassez de médicos na colônia e o alto preço das drogas e remédios encontrados no Brasil ou importados da Europa, obrigavam as pessoas a recorrerem aos recursos oferecidos pela terra e aos saberes curativos dos índios.

A concepção de doença e enfermidade entre os nativos relacionava-se mais com o mundo espiritual do que com o mundo físico material propriamente dito. Todos os males que os acometiam eram atribuídos aos maus espíritos. O pajé líder espiritual dos silvícolas desempenhava importante papel dentro da tribo pois, por meio de seus conhecimentos a respeito de ervas e plantas, esse chefe manipulava receitas de curas, além de realizar rituais místicos religiosos com plantas alucinógenas, visando atingir esse mesmo objetivo, a cura dos doentes; sobre essa confiança que os silvícolas depositadavam no pajé, escreveu Guilherme Piso:

de sorte que daqui se pode ver a uniformidade com que os povos, embora ignorantes e de nenhuma letra exercem a medicina conosco. Conservam tão arraigados os preceitos de cura transmitidos tradicionalmente de mão em mão, que hão de sofrer antes da morte do que abandonar as suas opiniões nesta matéria.[17]

Piso era um médico holandês integrante da comitiva de Maurício de Nassau. O modo como os silvícolas utilizavam a flora em favor da manutenção da saúde chamou a atenção desse europeu. Além de observar as práticas indígenas de empregar espécies vegetais no tratamento das doenças, submetia essas observações à experiência, testando  “receitas” e vegetais que eram utilizados pelos ameríndios.

Alguns europeus tentaram explicar a cosmologia indígena ao mesmo tempo em que questionavam a eficácia das práticas de cura desenvolvidas pela sociedade europeia. Frei Caetano Brandão é um exemplo daqueles que preferiram exaltar a ciência dos nativos ao passo que colocava em xeque a sabedoria médica erudita desenvolvida na Europa. Afirmava esse religioso que seria mais condizente “tratar-se uma pessoa com um tapuia do sertão, que observa com mais desembaraçado instinto, do que com um médico vindo de Lisboa.”[18]

Frei Brandão mostrava-se duvidoso em relação aos métodos das ciências e sobretudo, da medicina convencional europeia. Porém, ao contrário de Piso (médico por formação), o religioso talvez não dispusesse de embasamento suficiente para afirmar a eficácia dos diferentes modos de exercer a cura. Os comentários tecidos pelo Frei podem estar ligados a um sentimento de encantamento com as novidades das coisas provenientes do novo mundo. Brandão é apenas um dos muitos exemplos de cronistas que mesmo não tendo conhecimento substancial sobre as ciências naturais e médicas, aventuraram-se em descrever e documentar as características naturais da América. “Qualidades medicinais virtuosíssimas, segundo construções mentais fantasiosas ou mesmo comprovadas pela experiência, apareciam diante do europeu.”[19]

Ambrósio Fernandes Brandão também conhecido como Brandônio, um senhor de engenho que viveu no Brasil entre o século XVI e XVII, tomado por igual postura apaixonada em relação a colônia portuguesa, escreveu falando sobre bons ares, bons céus e felizes constelações como características da terra de Vera Cruz. Salientou a não existência de doenças, nem mesmo das febres, tão comuns em terras da Europa, Ásia e África. Ele também afirmava que pessoas acometidas por febres podiam curar-se viajando para os trópicos: “passando a linha equinocial para esta parte sul, logo convalescem, e os ruins ares que trazia o navio se desfazem e consomem”[20]. Para Brandônio, a cura obtida entre os doentes europeus que vinham para o Brasil aconteceria de forma miraculosa, bastando somente ao enfermo passar de um ponto geográfico a outro no globo terrestre. Propugnava a ideia de que as enfermidades eram uma condição própria do velho mundo.

acreditava-se que o ar era o comunicante entre a regência dos astros e a vida dos homens. Símbolo da espiritualização, ele era considerado responsável tanto pela saúde quanto pela doença, agindo de acordo com os movimentos dos corpos celestes, da exposição aos ventos, da qualidade da água e da orientação geográfica local.[21]

Fernão Cardim é mais um dos cronistas que registraram as qualidades dos bons ares do Brasil, relacionando inclusive à ausência de doenças e a consequente longevidade dos nativos aos favores benéficos do clima. Cardim também atribuiu ao clima brasileiro a causa da boa saúde desfrutada pelos nativos; afirma o jesuíta: “o clima do Brasil geralmente he (sic) de bons, delicados e salutíferos ares, donde homens vivem até noventa, cento e mais anos (sic).”[22]

No entanto os empreendimentos marítimos tanto de portugueses como de espanhóis custaram aos ibéricos a vida de muitas das pessoas que se dispuseram a desbravar as novas terras descobertas na Ásia, África e América. O escorbuto vitimou um grande número de viajantes que integraram esta ambiciosa e perigosa empresa. O consumo de alimentos estragados, sobretudo aqueles a base de carne, juntamente com a água potável de má qualidade que, ao longo da viagem apodrecia em barris, contribuíram para agravar esse quadro. Além é claro da não ingestão de vitamina C na dieta desses desbravadores.

Durante uma viajem para Calicute, atual Índia no final do século XV, Vasco da Gama teria perdido mais da metade de sua tripulação vitimada pela doença. A morte não conseguiu vitimar entretanto aqueles que ao chegarem em Mombaça, atual Quênia, teriam ingerido laranjas[23]. O próprio Pedro Álvares Cabral em viagem que fez para o oriente em 1507, tinha em sua embarcação doentes de escorbuto, contudo, registra o tripulante que até hoje permanece desconhecido, sendo nominado apenas como “Piloto Anônimo”, que ao chegarem em Melinde, foram recebidos com frutas cítricas fornecidas pelo monarca da localidade: “ em nossos navios tínhamos alguns doentes da boca, e com aquelas laranjas ficaram sãos [...].”[24] Demonstrando assim a eficácia desse alimento no combate à doença.

As adversidades enfrentadas pelos europeus nas Índias ocidentais e América, fez com que percebessem as virtudes existentes na natureza local. Mediante o conhecimento oriundo dos nativos, puderam identificar na natureza aquilo que poderia ser utilizado como alimento, veneno ou remédio. Os registros do doutor Sigaud a esse respeito na obra denominada Do Clima e Das Doenças do Brasil ou Estatística Médica Deste Império só colaboram com tal afirmação:

os índios reconheceram nas províncias quase todas as substâncias vegetais; a lista dos leites, gomas, resinas, sumos e extratos vegetais da província do Pará, a mais rica de todas as províncias do Brasil em plantas alimentícias e especiarias, é um modelo do gênero: leite de curupitã, para dores de peito e hérnias; folhas de xiticáa, nas retenções de urina; raízes de manacan, para dores venéreas; infusão de folhas de ipadu nos casos de dor no estômago; fava de copabu, raiz de marupá-miri, contra diarreia; marapuana, remédio analéptico; andorinha, nos casos de hemorroidas e em banhos; raiz de jacareruaitana, nos ferimentos; doiradinha, na qualidade de emético; raiz de jatobá ou de marupá, ou ainda de sucuba, como remédio catártico; pacova catinga, nos ataques de sangue; a cinza das folhas de ararani, na hidropisia; o leite de amapá, para dores articulares; contra as dores reumatismais, a folha de caroba ou de camará; a aguá extraída por incisão da ambaubeira branca, nos casos de tísica pulmonar; a polpa do avencão, remédio peitoral; a folha da aninga, sobre feridas; caule de aninga apará, para combater a gangrena; leite de uácuraureputi, para dissipar as cataratas dos olhos; cinza de galhos de jaramacaru, para a mesma doença do órgão visual; leite de paracatepu, ou raiz de gapuhi, para dores nos olhos; leite de myruré, em vez de mercúrio, para os males venéreos; caapitiú, casca antifebril; leite de maçaranduba, para o peito; leite de anani, para os casos de fratura; leite de pepino do mato, para dores nervosas; leite de (siringa), para luxações; leite de sucubá, para inchação; leite de jasmim do mato, nas obstruções; raiz de tania cuari, para gonorreias; folhas de solidônia, para uma ferida simples; leite de ucuubá, para as feridas da boca; raiz de tajamembeca, para resolver os tumores; acapana misturada com leite de mulher, para as dores de ouvido – remédio soberano; raiz de batua, para dissolver as congestões hepáticas.[25]

Para Sigaud a província brasileira do Pará era a mais bem servida de vegetais com propriedades benéficas aos brasileiros de então. O médico francês citou tratamentos para diversas enfermidades e males como a icterícia; hérnias; menstruação; obstrução do baço; remédio anti-helmíntico; asma; retenção de urina; hemoptise; diarreia; doenças do útero e varíola. Relatou também que o conhecimento de um grande número de plantas venenosas conhecidas pelos europeus colonizadores, advinha dos saberes indígenas. Destacou entre essas plantas o tucupi, sumo venenoso da mandioca causador de cólicas, vômitos e convulsões; a erva de rato, também com propriedades tóxicas e o bororé, que os índios da região amazônica utilizavam como veneno nas pontas de suas flechas.[26]

Carneiro cita o curare como um poderoso paralisante muscular, sendo este, da mesma forma que o vegetal  anterior, empregado pelos índios na ponta das flechas; o timbó utilizado nas pescarias e que, dissolvido na água “adormecia” os peixes. Além do jenipapo utilizado para pintar o corpo, e que criava sobre a pele uma camada escura protegendo-a do ataque de insetos e da exposição aos raios solares.[27]

Em relação às plantas alimentícias que os europeus aprenderam a desfrutar destaca-se dentre outros exemplos a mandioca. Devido à ausência de trigo na colônia, bem como às dificuldades de importar o cereal do continente europeu, o tubérculo tornou-se alimento indispensável na dieta dos habitantes do Brasil colônia e império.

Hans Staden um viajante alemão que esteve no Brasil durante o século XVI, e publicou na Alemanha de 1557 o livro intitulado “Viagem ao Brasil”, é um dos primeiros cronistas a documentar sobre a extrema importância da raiz na dieta dos nativos brasileiros. Registrou inclusive de forma detalhada o uso que os ameríndios faziam da planta na composição da bebida fermentada denominada Kawyn. O europeu também informava que além da raiz, os nativos acrescentavam o milho na feitura desse licor, sendo ele costumeiramente consumido após vitórias bélicas dos índios sobre grupos rivais, bem como em rituais de antropofagia. “quando chega o momento de se embriagarem, como é o seu costume quando devoram alguma vítima, fazem de uma raiz uma bebida chamada Kawyn; bebem-na toda e matam o prisioneiro.”[28]

O viajante dedicou um dos capítulos da sua obra para esclarecer seus leitores de que forma se dava a confecção da bebida, descreve os processos de fervura, mastigação e consequente salivação, executado unicamente pelas mulheres da tribo. Ao visualizar o produto final de todo esse processo artesanal, Staden ainda emite sua opinião a respeito da bebida, “É densa e deve ser nutritiva.”[29]

Staden também registrou a forma como os nativos preparavam as terras que receberiam as plantações. Segundo o alemão queimava-se o mato, deixando em seguida o solo em repouso por um breve período. Feito isso, plantavam-se as mudas do tubérculo, que depois de colhido poderia ser utilizado ralado ou torrado.

também tomam as raízes frescas e as deitam n'água, até apodrecerem, que é quando então as retiram, e põe-nas ao fumeiro, onde secam. A essas raízes secas chamam keinrima e conservam-se por muito tempo, e quando precisam delas, secam-nas em um pilão de madeira onde ficam alvas como a farinha de trigo. Disto fazem eles bolinhos a que chamam byyw.[30]

Fernão Cardim, vai além em suas afirmações a respeito da mandioca. Em seu trabalho intitulado, Tratados da Terra e Gente do Brasil, cita-a como um eficiente remédio para doenças do fígado:

desta mandioca curada ao fumo se fazem muitas maneiras de caldos que chamam mingaus, tão sadios, e delicados que se dão aos doentes de febres em lugar de amido e tisanas e da mesma se fazem muitas maneiras de bolos, coscorões, fartes, empenadilhas, queijadinhas d’ açúcar,  e misturada com farinha de milho, ou de arroz, se faz pão com fermento, e levedo que parece de trigo. Esta mesma mandioca curada ao fumo é grande remédio contra a peçonha, principalmente de cobras. [...]. Índios fazem vinho dela, e é tão fresco e medicinal para o fígado que a ele se atribui não haver entre eles doentes do fígado.[31]

Ainda em 1587, Gabriel Soares de Souza, senhor de engenho em terras do atual estado da Bahia, prescrevia no seu “Tratado Descritivo do Brasil”, algumas técnicas curativas ensinadas pelos indígenas, dentre elas a utilização da farinha de mandioca que, além de servir como alimento, ajudaria no combate a envenenamentos. Souza recomendava ainda milho para pessoas com boubas, caju para a conservação do estômago, almécega para “soldar carne quebrada”, amêndoas de pino para cólicas, araçá para doenças das câmaras, jenipapo para curar boubas, jaborandi para eliminar feridas na boca , cajá no combate a febres, camará para eliminar sarna, curuanha para doenças do fígado e o fumo para utilização no combate a asma e doenças intestinais.[32]

Frei Vicente de Salvador foi outro religioso que registrou as virtudes medicinais das florestas brasileiras. Em sua História do Brasil, publicada em 1627, mencionou assim como outros autores já citados, as propriedades curativas no óleo extraído das árvores de Copaíba, indicado sobretudo para o tratamento de feridas. Afirmava o frei: “Saram quaisquer chagas, principalmente de feridas frescas, posto com o sangue, de tal modo, que nem fica delas sinal algum, depois que saram.”[33]

Salvador cita ainda as benevolentes propriedades do ananás, que hoje conhecemos por abacaxi, capaz segundo ele de eliminar pedras dos rins por meio da urina.

O REGISTRO DAS FUNÇÕES FITOTERÁPICAS DAS PLANTAS NAS OBRAS DOS DOUTORES SIGAUD E CHERNOVIZ

A possibilidade de empregar determinadas plantas em terapias de combate e cura as enfermidades levou alguns brasileiros e estrangeiros a registrarem esses favores da natureza para com a saúde do homem, entre eles se destacaram no século XIX o Dr Sigaud e o Dr Chernoviz.

Dr José Francisco Xavier Sigaud, doutorou-se em medicina pela faculdade de Estrasburgo em 1818, chegou ao Brasil no ano de 1825 e instalou-se no estado do Rio de Janeiro, onde desenvolveu importante atividade editorial em alguns periódicos e publicações. O maior destaque foi a obra intitulada “Do Clima e das Doenças do Brasil: Ou Estatística Médica Deste Império”, trabalho no qual Sigaud propunha esboçar um quadro sobre as características sanitárias do país; levando em consideração as singularidades geográficas e climáticas de cada região brasileira. Esse projeto foi publicado oficialmente na França no ano de 1844.

O Dr Pedro Luiz Napoleão Chernoviz de nacionalidade polonesa, doutorou-se em medicina pela faculdade francesa de Montpellier, na década de 1830. Chegou no Brasil em 1840. Com o intuito de facilitar o acesso aos métodos de cura entre a população, desenvolveu no ano de 1842 o trabalho intitulado “Diccionario (sic) de Medicina Popular”.

Apesar de ambas as obras terem sido escritas já no século XIX, o conhecimento contido nessas publicações deve ser entendido não como o resultado de experiências e observações feitas a curto prazo pelos cientistas naquele século, mas como o resultado de observações, práticas e experiências realizadas por peninsulares e silvícolas no decorrer de toda a vida colonial brasileira, cujo inicio se deu em meados do século XVI.

Na grande gama de plantas referenciadas por esses autores algumas se destacaram, como é o caso da babosa e do jaborandi que, citadas nas obras de ambos os doutores, pode significar uma certa concordância sobre as propriedades curativas desses vegetais; bem como uma grande incidência do uso dessas mesmas plantas no tratamento de determinadas doenças que vitimaram a população. A babosa ou aloés foi descrita na obra de Chernoviz (1890) como eficiente medicamento para enfermidades do trato digestivo, o autor recomendava seu uso como purgante, estimulante ao apetite, tonificante do tubo digestivo e ativador da secreção do fígado; destaca ainda os múltiplos empregos desse vegetal na composição de remédios: “muitos medicamentos compostos tem aloés, os principais são: o elixir de graus, as pilulas escossezas (sic), os grãos de saúde do Dr Frank, as pilulas angelicas e as pilulas gulosas ou grãos da vida”.[34]

Sigaud (2009) referindo-se a mesma planta também descreveu-a como purgante, o que coincide com a indicação do doutor Chernoviz, além de afirmar ser benéfica para fluxos hemorroidais e ingrediente para um composto vermicida utilizado pelos habitantes da Bahia no século XIX[35].

Outra planta medicinalmente reconhecida pelos doutores, empregada como tônico e estimulante, ingrediente presente em diversos compostos destinados a manutenção da saúde ainda nos dias de hoje é o guaraná. Chernoviz apresenta-o como matéria-prima para um refresco a base de água, cujos brasileiros das províncias do norte costumam consumir em jejum para “acalmar-lhes a sede”, indicando também como um importante medicamento no combate a diarreias[36]. O relato do autor vai ao encontro da exposição que Sigaud fez a respeito da mesma planta: “ serve de febrífugo, principalmente nas febres malignas; é dado com sucesso na disenteria, como tônico”[37].

 Sigaud também não deixa de registrar o uso que os índios faziam da planta na composição de suas dietas alimentares:

os índios Manhês se aplicam no fabrico de guaraná; eles secam a semente ao sol e a reduzem a um pó seco, o qual, misturado com água, serve para formar bisnagas cilíndricas e duras, juntamente com farinha de mandioca e de amêndoas de cacau.[38]

A erva conhecida como “mil-homens” também é lembrada pelos autores que a recomendavam para o tratamento de úlceras. Chernoviz fala do preparo da erva utilizando um procedimento conhecido como infusão, que consiste em lançar água fervente sobre determinada substância deixando-a em repouso, a fim de fazer com que a mesma libere suas propriedades medicamentosas ao final do processo, que se dá no esfriamento da água

infusão de raiz de mil homens, que se prepara com 4 grammas (sic) desta raiz e 250 grammas (sic) de água fervendo, pode ser empregada com vantagem em lavatórios contra as úlceras; ou a raiz em pó nas mesmas úlceras. Esta mesma infusão é também recommendada (sic) internamente no fastio. Muitas outras plantas do gênero aristolochia, que habitam em differentes (sic) partes do Brazil (sic), possuem as mesmas propriedades estimulantes e são empregadas umas pelas outras.[39]

Para o autor do Manual de Medicina Popular, essa planta semelhante a outras encontradas em terras brasileiras, possuía uma função estimulante, visto que o sinônimo de fastio apontado por ele é tédio e falta de apetite.

O limão também foi mencionado pelos doutores, assim como a laranja e outras frutas cítricas. Muitas das quais responsáveis pela cura de doentes de escorbuto nos séculos XV e XVI. Dentre os benefícios observados no limão pelos cientistas, o Dr Chernoviz recomendava o preparo de chás utilizando as folhas do limoeiro no tratamento de pessoas machucadas por contusão, queda e “pancadas” no peito, bem como o uso prolongado nas afecções crônicas do peito.[40]

Em relação ao uso do suco da fruta, a limonada, destacou esse mesmo autor que além de ser utilizada como bebida refrigerante, empregavam-na também como medicamento no combate de febres e moléstias biliosas.

Sigaud ao falar sobre a utilização do mesmo suco como elemento terapêutico, faz referência a viagem marítima da fragata denominada Eurydice, realizada entre os portos do Brasil no século XIX, onde no regresso da embarcação que partira do Pará com destino ao Rio de Janeiro, observou-se entre os tripulantes a incidência do escorbuto; contudo, afirma o francês que um integrante da expedição, um cirurgião que também viajava na fragata, ao constatar a mortífera pestilência tomou segundo o Dr Sigaud uma sábia decisão, escreveu ele:

o sr. Nicolas Franchelli, cirurgião da fragata, prescreveu com sucesso decocções de tamarindo, limonada crítica (sic) fortificada com álcool de cocleária, e de três em três dias, uma dose de três grãos de sulfato de quinino.[41]

Para Sigaud a eficácia do tratamento consistiu na combinação acertada do suco do limão e outras substâncias como tamarindo e o sulfato de quinino.

Outro vegetal que mereceu a atenção dos doutores foi a erva mate, que ainda hoje é utilizada na forma de chá em algumas regiões do país. Sigaud a recomendava como diurética e sudorifica, empregada inclusive como substituta da bebida do café nas regiões sulinas do Brasil[42]. Chernoviz registrou os benefícios de se consumir o mate através da infusão, ou seja, na forma de “chimarrão”:

as folhas, depois de seccas (sic) ao fogo e reduzidas ao pó grosso, servem para a preparação de uma infusão muito gostosa de que se faz uso frequente nas províncias do sul do Brazil (sic), em Montevideo (sic) e Buenos Ayres (sic). É de sabor amargo e um pouco adstringente: constitui uma bebida tônica e estimulante, proveitosa nas febres intermitentes.[43]

Chernoviz descreve até mesmo a forma de se preparar o chimarrão:

para preparar esta bebida, é preciso ter: 1. uma cuya (sic) isto é, um vaso de prata, louça, cabaça limpa de miolo, etc., de bocca (sic) um pouco estreita; 2. um canudo de prata, chamado bomba, tendo na parte inferior uma bola ôca (sic) crivada, que impede a ascensão do pó. Mette-se (sic) na cuya o mate, misturado com assucar (sic) ou não, humedece-se (sic) este com água fria, enche-se a cuya com água quente e chupa-se, por meio da bomba, o liquido quente.[44]

As carquejas amargosa e doce também foram citadas pelos médicos Sigaud e Chernoviz; para o primeiro ambas as ervas poderiam ser utilizadas nos casos de febres intermitentes, dispepsia e hidropisia[45]. Chernoviz da mesma forma reconhecia as propriedades anti-febris desses vegetais, bem como a semelhança das qualidades no emprego dos mesmos. Contudo, além da febre, as carquejas segundo o polonês, poderiam ser empregadas nas terapias contra o fastio, a diarreia e as obstruções do fígado.[46]

A goiabeira e seu fruto também foram relacionadas pelos doutores. Sigaud além de registrar o uso da fruta no preparo de geleias, afirma que a planta foi de grande importância para o combate de um surto de cólera ocorrido em Paris no ano de 1832 [47]. Já Chernoviz apontou a fruta como benéfica ao sistema circulatório, ao combate as febres, ao escorbuto, a icterícia, além de recomendada no tratamento das diarreias.[48]

Deve-se salientar que a medida em que os europeus foram se estabelecendo no “novo mundo”, foram também incorporando na América e no Brasil elementos próprios do seu cotidiano na Europa (costumes, objetos, crenças religiosas). Aclimatando inclusive diversas espécies vegetais, não só aquelas próprias do velho continente, mas as que trouxeram da Ásia e da África.

O MITICO, O SOBRENATURAL E AS PLANTAS

Além da utilização das plantas nos tratamentos terapêuticos para cura, os primeiros habitantes do Brasil apropriaram-se de rituais míticos e religiosos na luta contra as enfermidades. Entre os nativos, o pajé significava não só o orientador da vida espiritual dos silvícolas, mas também alguém a quem se poderia recorrer diante das adversidades do mundo físico e material, e isso incluía até mesmo a saúde do corpo. Esse líder apropriando-se dos conhecimentos terapêuticos de ervas e raízes acumulados pelo seu povo no decorrer de gerações, fundia tais saberes com as virtudes sobrenaturais que o autorizavam a interagir espiritualmente em favor dos seus aldeões. Somando seu conhecimento sobre as plantas e sua autoridade religiosa, representava o pajé real possibilidade de cura  aos índios.

No entendimento dos silvícolas, as doenças eram compreendidas como resultado da imposição e maldade dos maus espíritos. Não havia fronteira definida entre o mundo físico e espiritual. As artimanhas dos seres maléficos repercutiam em todas as áreas da vida dos indígenas, inclusive na saúde e bem estar do próprio corpo.

Essa percepção unificada de dois mundos extremamente dependentes entre si não é contudo, uma visão unicamente indígena. O Cristianismo trazido pelos peninsulares ao Brasil no início do século XVI, também nutria essa concepção de unidade entre físico e espiritual, entre real e imaginário.

Os cristãos entendiam que a ocorrência de doenças e demais males entre as pessoas poderiam estar ligados a opressão espiritual exercida pelos demônios e maus espíritos, e assim como os nativos que se utilizavam mutuamente de vegetais e ritos, combinavam rezas e orações com o uso das plantas.

na cura das afecções, outros métodos se combinavam com a administração de remédios do senso comum, compostos a base de plantas, raízes, pedras ou mesmo de excrementos. Frequentemente tais substâncias eram acompanhadas por processos rituais, orações e fórmulas mágicas imprescindíveis para a concretização do tratamento.[49]

Diante dessa mistura de ações empregadas na composição de substâncias medicamentosas, criou-se no imaginário das pessoas remédios eficientes e poderosos, capazes de combater qualquer enfermidade. No entanto, essas formulações que nenhuma referência tinham nas ciências e no empirismo, pelo contrário, sobrecarregadas de superstições e crendices que eram, não passavam de simples formulações fantasiosas. “A pólvora, por exemplo, era utilizada no combate a várias afecções, principalmente o maculo, uma retite gangrenosa não mais encontrada em nossos dias.”[50]

Algumas receitas tinham entre seus ingredientes elementos comuns ao mundo das fábulas e da magia, é o caso dos unicórnios, cujo chifre era requisitado para inúmeras poções, além do “pó de múmias e caveiras de enforcados.”[51]

Missas foram celebradas e fogueiras com plantas aromáticas acessas, tudo para afastar o mau agouro das moléstias que poderiam adentrar as vilas[52]. Ao mesmo tempo em que se recorria ao sobrenatural através das orações para anular as ameaças biológicas, tomavam-se também atitudes preventivas por meio de defumações com plantas, pelas quais acreditava-se à época, purificariam o ar tido como comunicante muito suscetível às alterações dos corpos celestes e dos astros. Dentre as ervas queimadas nas casas e nas ruas destacaram-se o cedro, a artemísia, a losna e o alecrim.

a medicina registrada nos tratados e aquela praticada por leigos na informalidade dispunham-se a curar feitiços e outros males cujas causas eram atribuídas a forças que excediam os poderes da natureza. Pode-se reafirmar, portanto, que no Brasil colonial não existiam fronteiras rígidas entre a medicina erudita e as práticas curativas populares. A constante recorrência a magia, a crença em poderes sobrenaturais, o emprego de ervas e raízes acompanhadas de outras substâncias e de métodos baseados em supostos sistemas analógicos existentes entre as várias partes do mundo uniam as duas tradições que permaneceram engatadas durante todo o período colonial.[53]

A cachaça e a pólvora também subsidiaram algumas das receitas terapêuticas daqueles que se empenharam em desbravar os sertões brasileiros, e isso é explicado pelo fato de que ao adentrarem mata a dentro, além das plantas disponíveis no meio ambiente para a confecção de remédios, só dispunham os sertanistas, dos poucos elementos que carregavam na bagagem. Doutor Francisco José de Lacerda e Almeida que viajou entre os anos de 1780 e 1790 pelos sertões do Brasil coletou muitos depoimentos onde seus interlocutores testemunharam sobre a eficácia da cachaça no combate ao veneno de répteis peçonhentos, “ seu guia de nome Salvador, dizia não conhecer outro remédio quando mordido por uma cobra”[54] . Gurgel expressa opinião muito semelhante a esse respeito:

nos “remédios de paulistas” figuravam práticas como o uso de aguardente com sal para mordeduras de cobra, e o caldo de fumo, juntamente com a unção da pele com bolas de cera, utilizados contra picadas de mosquitos, pernilongos e borrachudos abundantes em algumas regiões.[55]

Carreira e Santos comparando o emprego de bebidas fermentadas como o vinho em Portugal e a aguardente de cana no Brasil afirmam que:

assim como foi a aguardente no Brasil dos séculos XVI, XVII e XVIII, em Portugal o vinho, principalmente, será celebrado e utilizado não somente como um prazer cotidiano, mas também como panaceia, um catalisador de ervas e plantas medicinais, a que hoje nos é dado conhecer no Brasil pelo nome de garrafadas. Mas será contra um mal particular que a aguardente neste país será evocada: a picada de cobra, um acidente que poderia ocorrer a qualquer um que habitasse na colônia.[56]

Criaram-se fórmulas excêntricas, remédios que não tendo nenhuma comprovação científica sobre sua eficiência, conquistaram só pelo nome e pelo julgamento que as pessoas faziam das receitas, um grande prestígio entre o povo. É o caso do Saca-Trapo, composto de pólvora, aguardente de cana, pimenta da terra, fumo e suco de limão. Depois de misturados esses ingredientes, deveria-se administrar o remédio pelo reto[57].

Haviam também as Triagas produzidas na Europa que, consistiam numa espécie de garrafada feita por meio de serpentes mortas, e que, acreditava-se à época, eram muito eficientes no combate às pestilências. O processo de confecção da Triaga se dava em rituais envoltos na fé e na religiosidade, cenário onde se misturava a bebida fermentada com o animal peçonhento.[58]

Já a Triaga Brasílica, contraveneno produzido nos Colégios da Companhia de Jesus, era um composto apenas de ervas, plantas, raízes e frutos do Brasil. No entanto nem por isso foi desprezada ou inferiorizada ao ser comparada por brasileiros e estrangeiros que conheciam a fórmula europeia do produto.[59]

Outro método corrente entre aqueles que lançavam mão da natureza para combater suas enfermidades foi a “doutrina dos sinais”. Segundo Marques essa prática aprendida com os índios consistia em reconhecer através do formato e da cor das plantas, quais doenças poderiam ser tratadas por determinados vegetais, assim:

vegetais cujas folhas tivessem forma de coração, por exemplo, estariam indicadas para as doenças decorrentes de problemas relacionados ao músculo cardíaco. A cor das plantas também seria um importante orientador de virtudes. As amarelas serviam para os males provenientes do fígado, as vermelhas para as disfunções sanguíneas e assim sucessivamente.[60]

Esse método de cura procurava estabelecer uma analogia entre as características físicas do vegetal empregado, e o órgão ou parte do corpo humano que alterado em suas funções, deveria receber o tratamento.

CONCLUSÃO

A natureza através de seus reinos: animal, mineral e vegetal; continua representando importante fonte de manutenção para as necessidades do homem. Mesmo depois de cinco séculos da chegada dos europeus na América e dos portugueses no Brasil, constata-se ainda hoje um amplo emprego dos vegetais que, nos séculos XV e XVI constituíram-se em verdadeiras panaceias para americanos e europeus.

Os conhecimentos desenvolvidos desde o período colonial, foram incorporados na mentalidade e cultura do povo. Os brasileiros souberam agregar em suas receitas fitoterápicas e culinárias não só as plantas nativas do Brasil, mas também variedades de vegetais que aqui foram aclimatados pelos europeus. Dentre muitos pode-se destacar a pimenta, a gengibre, o cravo e a canela.

Algumas plantas no entanto tiveram sua aplicação revisada com o passar dos anos, como é o caso da babosa. Esta planta fora difundida pelos doutores Sigaud e Chernoviz no século XIX, como eficiente remédio no combate às enfermidades do aparelho digestivo. Atualmente a indústria cosmética e farmacêutica utiliza o vegetal como matéria prima de produtos para tratamento capilar.

Já o Guaraná amplamente consumido nas “províncias” do norte e o gengibre trazido pelos europeus das Índias Orientais e, que na transição do período medieval para o moderno fora amplamente utilizado como tempero e conservante, agora figura, assim como o primeiro, em ingrediente utilizado na fabricação de bebidas como sucos e refrigerantes.

O agrião indicado pelo Dr Chernoviz no tratamento do escorbuto, doença causada pela falta de Vitamina C no organismo, é em grande medida encontrado nas fórmulas de compostos e xaropes, além das receitas “caseiras” que visam combater enfermidades como a gripe, o resfriado e a tosse.

O consumo de chás, conhecimento repassado de geração em geração, cuja ingestão é associada a hábitos saudáveis de vida, é apropriado por muitas pessoas. As ervas agora estão ao alcance de todos, nos mercados é grande a variedade de matéria-prima disponível para o preparo dessas bebidas; encontrando-se inclusive não só os vegetais nativos do Brasil, mas também plantas importadas que os brasileiros aprenderam a apreciar. Algumas infusões como as de erva doce e camomila são empregadas sem restrições na dieta de crianças das mais variadas idades.

A erva mate que no passado fora recomendada pelos doutores no combate as enfermidades, é ainda hoje muito consumida no Brasil. É verdade que despropositadamente sem nenhum objetivo fitoterápico, sendo no sul do país utilizada mais comumente na forma de chimarrão, ao passo que em outras regiões brasileiras na forma de chá.

A mandioca principal alimento consumido entre os nativos, e que devido a falta de trigo no Brasil colonial tornara-se indispensável na alimentação dos colonos, é também muito consumida nos dias de hoje. Seja em sua forma natural ou como farinha, constitui esse tubérculo muitas das receitas culinárias típicas do Brasil como por exemplo a tapioca.

O interesse demonstrado por peninsulares no tocante as “coisas” da natureza do Brasil, continua aguçando a curiosidade dos “homens comuns” e da ciência moderna, representada por muitos dos laboratórios sediados no país. No entanto tal tendência não se trata de uma característica específica dos brasileiros. A procura por formas saudáveis de viver é constatada hoje no mundo todo. As pessoas reconhecem o valor das inovações tecnológicas, contudo, invenções como o computador e a internet não foram suficientes o bastante para ofuscar a sabedoria proveniente da natureza.

Atualmente verifica-se um grande numero de publicações, livros, e revistas dedicados as práticas fitoterápicas. Tomando como exemplo um desses trabalhos, o conhecido Medicina Alternativa de A a Z cuja a autoria é de Carlos Nascimento Spethmann. Observamos nessa obra que para uma das enfermidades de maior incidência no país, a gripe, e que desde os primeiros séculos já acometia os brasileiros, o autor recomenda aos doentes o consumo de frutas cítricas como laranjas e limões. Indicação que vai ao encontro das afirmações de cronistas do período colonial, bem como dos médicos que aqui estiveram no período do império.


Wellington Machado de Andrade - Graduando, Autor do Trabalho.

João Pedro Dolinski - Professor Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso, Mestre em História pela Fundação Oswaldo Cruz.

[4] MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em Boiões: Medicinas e Boticários no Brasil Setecentista. Campinas, SP. Editora da Unicamp, 1999. Pg: 57

[5] ANCHIETA, José de. Apud MARQUES, 1999, pg 47

[6] GURGEL, Cristina. Doenças e Curas: O Brasil nos Primeiros Séculos. São Paulo: Contexto, 2010. Pg: 62

[7] GIMENEZ, Karen. A Fantástica Ciência do Egito Antigo.

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[8] REZENDE, Joffre Marcondes de. À Sombra do Plátano: Crônicas de História da Medicina - Dos Quatro Humores às Quatro Bases. São Paulo, SP. Unifesp, 2009. Pg: 52

[9] RIBEIRO, Márcia Moisés. A Ciência dos Trópicos: A Arte Médica no Brasil do Século XVIII. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. Pg: 26.

[10] COLOMBO, Cristóvão. Diários da Descoberta da América: As Quatro Viagens e o Testamento, 2ª Edição Porto Alegre: Editora L&PM, 1984. Pgs: 58, 59.

[11] CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta de Pero Vaz de Caminha- Edição Histórica e Comemorativa dos 500 Anos do Brasil em São José dos Pinhais. S. J. dos Pinhais. PR. 2000. Pg: 61.

[12] RIBEIRO, 1997, Pg 63

[13] GURGEL, 2010, Pg 113

[14] RIBEIRO, 1999, Pg 29

[15] SIGAUD, J.F.X. Do Clima e das Doenças do Brasil ou Estatística Médica Deste Império. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009. Pg 129

[16] CALAINHO, Daniela Buono. Jesuítas e Medicina no Brasil Colonial. Tempo, Rio de Janeiro, n.19, 2005. Disponível em: tempowww.scielo.br/pdf/tem/v10n19/v10n19a05.pdf

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[17] Piso, Guilherme. História Natural do Brasil 1648. Apud Botelho, João Bosco. Práticas Médicas no Brasil Colonial: A Presença da Medicina Portuguesa, no Século XVII, no Brasil Colonial.

Disponível em http://www.historiadamedicina.med.br/?p=319

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[18] BRANDÃO, Frei Caetano. apud Marques, 1999. Pg 69

[19] RIBEIRO, 1997. Pg 26

[20] BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. apud HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil, São Paulo, SP. Brasiliense; Publifolha, 2000.

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[21] GURGEL, 2010. Pg 95

[22] CARDIM, Fernão. Apud SANT’ANNA NETO, João Lima. Alegres Trópicos: Primeiras Impressões dos Cronistas e Viajantes Sobre o Tempo e o Clima no Brasil Colônia.

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[23] GURGEL, 2010. Pg 85

[24] HOLANDA, 2000. Pg 322

[25] SIGAUD, 2009. Pg 132

[26] SIGAUD, 2009. Pg 116

[27] CARNEIRO, Henrique. O Saber Fitoterápico Indígena e os Naturalistas Europeus. Pg 21.

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[28] STADEN, Hans. Viagem ao Brasil- Coleção A Obra-Prima de Cada Autor. Tradução de Alberto Lofgren. Notas de Teodoro Sampaio. Editora Martin Claret. São Paulo, SP. 2006. Pg 96

[29] STADEN, 2006. Pg 147

[30] STADEN, 2006. Pg 143

[31] CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil, 1580. apud OLIVIERI, Antônio Carlos. VILLA, Marco Antônio. Cronistas do Descobrimento. Série Bom Livro. Editora Ática 2004 P 131 .

[32] SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil. apud GURGEL, Cristina Brandt Friedrich Martin. A Fitoterapia Indígena no Brasil Colonial: Os Dois Primeiros Séculos. PUC Campinas. P 3. Disponível em http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2004/Simposios%20Tematicos/Cristina%20Brandt%20

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[33] SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil. 1500- 1627. Pg 8, 9.

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[34] CHERNOVIZ, Pedro Napoleão. Dicionário de Medicina Popular. 1890. Pg 119. Disponível em http://www.brasiliana.usp.br/bbd/search?fq=dc.contributor.author:%22Chernoviz,+Pedro+Luiz+Napolea%CC%83o,+1812-1881%22

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[35] SIGAUD, 2009. Pg 366

[36] CHERNOVIZ, 1890. Pg 105

[37] SIGAUD, 2009. Pg 358

[38] SIGAUD, 2009. Pg 358

[39] CHERNOVIZ, 1890. Pgs 431, 432

[40] CHERNOVIZ, 1890. Pg 313

[41] SIGAUD, 2009. Pg 155

[42] SIGAUD, 2009. Pg 362

[43] CHERNOVIZ, 1890. Pg 387,388

[44] CHERNOVIZ, 1890. Pg 388

[45] SIGAUD, 2009. Pg 360

[46] CHERNOVIZ, 1890. Pg 485

[47] SIGAUD, 2009. Pg 358

[48] CHERNOVIZ, 1890. Pg 1058

[49] RIBEIRO, 1997. Pg 72

[50] GURGEL, 2010. Pg 152

[51] GURGEL, 2010. Pg 96

[52] GURGEL, 2010. Pg 95

[53] RIBEIRO, 1997. Pg 85

[54] CARREIRA, Lígia; SANTOS, Christian Fausto Moraes dos. Mezinhas, Triagas e Garrafadas: Pequena Reflexão Histórica Acerca da Saúde e do Cuidar no Brasil. Revista Ciências da Saúde, Maringá 2001. V.1, N.2, Pg 9.  Disponível em http://www.academia.edu/3673999/Mezinhas_triagas_e_garrafadas_pequena_reflex%C3%A3o_hist%C3

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historic_consideration_about_health_and_caring_in_Brazil

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[55] GURGEL, 2010. Pg 152

[56] CARREIRA;SANTOS, 2001. Pg 9

[57] GURGEL, 2010. Pg 153

[58] CARNEIRO, XXXX. Pg 21, 22

[59] RIBEIRO, 1997. Pg 54

[60] MARQUES, 1999. Pg 42


Publicado por: Wellington Machado de Andrade

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