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Pela madrugada (conto)

Pela madrugada (conto), Chico Araújo, Francisco Sérgio Souza de Araújo, Contos, produção literária, gênero textual: conto.

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Pela madrugada


Meia-noite. Fim/começo. Despertou de sono de quinze minutos. Escutou. Julgava ter ouvido o telefone do escritório, embaixo. Atento. Nada. Impressão!? No quase novo sono, a impressão soando longe. No dial eletrônico, dois minutos do novo dia. O som, chamando.
Desceu. Enquanto pisava os degraus, embaralhava possibilidades. À porta do escritório, a certeza. Dentro, o silêncio. A mudez inegável e irritante. Ninguém mais, embora antes houvesse o convite. Foi nessa hora que outro ruído. Reconheceu a canção no telefone móvel. Em cima. No quarto. No criado-mudo, à esquerda da cama, lado em que costumava dormir.

Nos passos rápidos a ruminação de acontecimentos graves. Os chamados insistentes sempre afligem. O que será que houve? Algo com mamãe? Com papai? Vinte e dois degraus entre indagações tensas e uma resposta concreta. No último, a sensação de que o aparelho cessara de tocar. A certeza, à porta do quarto. Respirou, querendo oxigenação mais tranqüila. Caminhou até a mesa de cabeceira da cama. No bina, número não reconhecido.
Sem dúvida, do escritório subia, nítida, nova convocação. Entre os degraus descidos quase em queda, o desassossego, a apreensão, o medo. A impossibilidade de pelo menos supor qualquer algo do outro lado da linha justificava o pavor de não ouvir voz alguma ao atender ao telefone.

Quando dispôs a mão para alcançá-lo, fôlego ausente, confirmou o novo silêncio. A calma na casa não acordava com a inquietação do espírito. O cansaço do dia anterior pesava mais agora, adicionado o peso não avaliável dos já quinze minutos do dia ainda rebento, ainda em escuro.
Aguardou. Tomou novo ar. Estabilizou a respiração, que ouvia, somente a ela. Na vizinhança distante, um ou outro latido. Fora isso, somente o vento cantando nas folhas das árvores e pelas frinchas de portas e janelas. Buscou um copo d’água que bebeu calma e pensativamente. Pelo relógio da cozinha descobriu estar parado, em expectativa, já há vinte minutos. Vinte minutos e nada, nenhuma nova ligação. O que houve? O que aconteceu?

No silêncio característico da madrugada o pisar profundo de pés ansiosos nos degraus frios. Nova investigação no dial do celular confirma a incerteza do número que o chamara. Não arriscou. Um engano seria possível. Ademais, já passou muito tempo. Fosse uma necessidade de fato, real, de alguém conhecido, teria havido nova procura.
Ajeitou o travesseiro na cabeceira e recostou-se. Queria dormir. Desejava descobrir o que acontecera, por que as ligações findaram em sossego dilacerante. Olhos fechados, imagina que o ruído debaixo se repete. Vagueia o olhar, examinando no teto uma confirmação concebida. Ouve a calada da noite. Só ela se expressa, natural. Desiste de ligar para a mãe, para o pai. Poderiam estar tranqüilos, dormindo sãos, salvos. Despertariam assustados.

O sono espantara-se. Em meio à distração com a TV, uma chamada telefônica. O sobressalto. Olhos e ouvidos nos degraus, a calma mesma no ambiente. O som insistente no aparelho defronte, o susto igual da personagem. Semelhante silhueta, análoga situação.
De fora, a câmera descrevendo a solidão do lugar, a escuridão da noite e a ausência de barulhos. Somente o telefone, de longe. A lente, caminhando e invadindo os espaços da casa, vai devassando intimidades. Percorre degraus e rompe a porta semi-aberta do quarto ainda sem luz. O abajur, sobre criado-mudo à esquerda, acende nos olhos de um recém-acordado a impressão de que o telefone toca. Atende. Sinal de linha. Sonho? Espera, enquanto busca a exatidão das horas. 1:15, pisca o dial. Boceja. Apaga o abajur e põe-se de lado, de frente para o telefone. Vai dormir.

Mais aí o chamado se repete. Mas o abajur não se acende, a personagem nem é mostrada mais, a imagem já é do dia brilhante de sol. Mas então... o toque é mais próximo, sobe dali bem debaixo, vem do escritório. Brincadeira?! Pôs os pés no chão. Já de pé, entendeu que quando chegasse embaixo, o silêncio cantaria vitória novamente, gargalhando – quem sabe – dele. Esperou. Premonitor. Então viu a luz piscante do telefone móvel chamando, a musicalização preenchendo o ambiente em seguida.
O número era desconhecido. Alô. Alô?! Barulhos. Ruídos. Sussurros incompreensíveis. Algazarra. Risadas ao fundo. Nenhuma palavra amiga, nenhum dizer esclarecedor. Estampido. Estampido. Estampido. Quietação. Nada mais.

Uma angústia rara e intensa foi abrindo caminho e enfraquecendo qualquer resquício de domínio que ainda tivesse sobre si. O mal-estar ingressando pelos ouvidos e alcançando os sentidos. A boca, seca, cala palavras amargas, em pânico. As mãos, trêmulas, balançam o silêncio num aperto entre os dedos úmidos. As pernas, sem forças, despencam o corpo sobre a cama inquieta e sem repouso. Os olhos, atônitos, calcam, em vão, uma imagem responsiva. Tudo incerto. A não ser o pânico infiltrando-se.
Então ele já se chegara, já lhe percorrera o espírito, já se instalara. E já tomava conta da situação: o olhar apreensivo para os telefones destacava o desejo de ligar para alguém, buscar respostas. Calava-se, porém, a boca seca procurando saliva, os passos pelo quarto marcando o piso de angústia e medo. De volta à cozinha, buscou estancar a sede, entretendo-se, antes, com a morte de inseto caseiro. Depois, a água descendo garganta e pescoço abaixo, engasgando e umedecendo.
As perguntas mesmas, as certas ausências de resposta: O que foi isso, meu Deus? O que aconteceu? Onde aconteceu? A umidade da manhã, chegada pelo vento em rajadas frias, pregueava o suor ainda não percebido. O escancaro da porta da rua ampliava a sensação de isolamento, ninguém passava, a noite imperava só, total e sem interferência.
Vagou pela sala, onde pouco ficava. Enquanto na poltrona buscava tino sobre o que acontecera – Mas o que acontecera? – nem chegou a ver o dial do decoder passar para 2:00. Certamente não conseguiria dormir mais; no novo dia já em curso, o peso da noite angustiante limitaria seus passos.
Deixou em breu a sala e foi em procura do quarto. Nos degraus frios da escada descobriu um risco de formigas organizadas – formarão algum esqueleto? – descidas da parede. Ligou novamente o aparelho de TV e ali viu serem 2:30. Pôs a sintonia em canal de notícias – Quem sabe não aparece alguma informação sobre o que está acontecendo? O programa mostrando índices econômicos, fatos políticos, esportivos... Nada que pudesse servir de ajuda. Gatos sob a janela miavam o cio, fazendo um susto percorrer-lhe a espinha. Cochilava. Não chegara a ver as últimas matérias no telejornal.
Dirigiu-se ao banheiro. Após a urina vertida, foi ao chuveiro, onde se deixaria para banhar o corpo em água fria – Talvez acalme. Mas... será verdade? É o telefone chamando? Nu, já não teve disposição de ser rápido pela escada. O medo do desconhecido segurava suas pernas em peso descomunal. Foi lentamente que desceu. E com receio quase não fala:
- Aaalllô.
- Antônio? É o Eduardo, cara...
- Eduardo? Desculpe, aqui não mora nenhum Antônio não...
- ...
Foi pondo o aparelho no gancho que percebeu as mãos trêmulas. Acendeu a luz do escritório e viu, no vidro da estante onde punha os livros indispensáveis, a dor confrangida no rosto derrotado espalhando-se em sulcos de suor escorrendo pelo corpo. Na boca sem saliva o gosto amargo do sangue rompido dos lábios. Sentou-se, exausto, na cadeira ali existente, onde recostou sua agonia. Deixou o tempo agir. Depois, respiração ainda impaciente, subiu para o banho, esquecendo a luz acesa.
Deixou-se muito tempo sob o chuveiro, desejando que a água escorrida levasse para o ralo a aflição acumulada. Estorvo. Rastro de água. Enquanto o negrume da madrugada foge ao despertar do dia, sofrimento denso não se aquieta dentro daquela nudez sem forças para erguer-se da cama sem aconchego.
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[1] Chico Araujo é o pseudônimo, no mundo das artes, de Francisco Sérgio Souza de Araujo que, nas salas de aula em escolas do Ceará, é reconhecido como Sérgio Araujo.


Publicado por: Francisco Sérgio Souza de Araujo

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