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As relações de poder no fime Cidade de Deus a partir da articulação de seus personagens na trama

Discussão acerca das relações de poder construídas ao longo da história na sociedade e no cinema brasileiro.

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RESUMO: O presente artigo tem como objetivo trazer uma discussão acerca das relações de poder construídas ao longo da história na sociedade e no cinema brasileiro, através da análise do filme Cidade deDeus de Fernando Meirelles. Para enriquecimento das construções teóricas pretendidas, será realizada uma discussão com Michel Foucault que mostrará como os mecanismos de poder atingem a realidade mais concreta dos indivíduos dentro dessa sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Relações de poder; Personagens; Cidade de Deus.

O referido artigo objetiva discutir a concepção de poder e de que forma este se configura ao longo da história na sociedade. Pretende-se ainda fazer uma análise mostrando como as formas de poder estão presentes no âmbito de nossa teledramaturgia brasileira. E foi na tentativa de estender a discussão para outros campos de pesquisa que foi pensado no filme Cidade de Deus do diretor Fernando Meirelles.

A seleção não poderia ser mais pertinente, visto que é uma produção trabalhada no cinema nacional e internacional e objeto de estudo de pesquisadores que tencionam fazer um passeio e uma verdadeira dissecção por entre os blocos de representações coletivas dos seus personagens, situando-os em um ambiente de exclusão e aprisionados pelas máscaras sociais que os silencia.

Para enriquecimento das construções teóricas pretendidas, será realizada uma discussão com Michel Foucault que mostrará como os mecanismos de poder atingem a realidade mais concreta dos indivíduos em sociedade.

Assim sendo, faz-se necessário trazer uma breve análise do filme a fim de entender como se deu a construção do ambiente, de seus personagens e principalmente as micro-relações de poderes envoltas neles.

Como o próprio nome já encerra significados, Cidade de Deus é o nome do conjunto habitacional construído na década de 60 com o intuito de alojar desabrigados das chuvas e também servir de moradia para retirantes. Vale salientar que o ambiente é erguido num espaço sem condições de infra-estrutura, luz e saneamento. A maioria das pessoas que ali residem são desempregadas e caricaturadas pela máscara do abandono social.

Na tentativa de fazer uma retrospectiva muito ousada do filme, Fernando Meirelles nos aponta alguns momentos em que são construídos os enredos que se entrelaçam e ao mesmo tempo se fundem no decorrer da trama. Na primeira fase é focada as aventuras do Trio Ternura, uma quadrilha de criminosos; e também apresentado o personagem Buscapé, um garoto condicionado pelo meio social e que não vê possibilidades de mudanças na sua vida.

Já na década de 70, a Cidade de Deus começa a ganhar contornos de favela devido a expansão demográfica; o crime e a repressão comuns na comunidade, se tornam mais acentuados. Por fim, o desfecho do filme acontece nos anos 80, quando a Cidade de Deus já é considerada uma favela gigantesca, e o tráfico cada vez mais forte.

Traçando uma ponte desses discursos imagéticos com outras leituras e levando em consideração como a ficção se aproxima da realidade (ou seria a realidade da ficção?) que vem em mente o ensaio produzido por Rita Olivieri Godet (2000), o qual trata da Memória, História e Ficção em Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Neste ensaio Godet busca problematizar as relações entre história, memória e ficção e faz alguns questionamentos: “seria a ficção mais real do que o real?”

Olhando um pouco mais de perto essa provocação e estendendo para a proposta de pesquisa, observa-se a existência de articulações e entrecruzamentos nos discursos literários. Assim, no filme Cidade de Deus temos a dissecação, através da ficção de uma expressão real, construída com tamanha maestria e que nos faz visualizar um retrato imaginário e concreto do ambiente e dos personagens que ali circulam.

Tratando ainda do ensaio de Godet e sua relação entre memória e ficção, recordo o filme e trago o personagem Buscapé, o jovem morador da periferia que vai narrar a trajetória de seus habitantes e revelar como surgiu a favela, bem como traçar a evolução da violência e do tráfico de drogas nesse lugar. Nessa perspectiva, a narração vem surgindo como a partilha de lembranças e experiências individuais, mas representativamente coletivas.

É interessante notar aqui que desde o início o filme traz uma verdadeira inquietação e ao mesmo tempo uma inovação eloquente, ao nos apresentar um jovem, negro, pobre e marginalizado em todos os sentidos, que terá voz na narrativa e imprimirá nesta o seu papel social como um produto ficcional (ou real?) desse meio.

Dando prosseguimento e observada num primeiro momento a síntese do filme, faz-se necessário discutir as relações de poder, como elas estão estabelecidas nesse ambiente e de que forma ele se corporifica nas práticas discursivas desses personagens.

Sabemos que a concepção de poder já foi abordada por muitos autores e grande parte deles apresenta uma corrente de pensamento variada, visto que muitos têm uma ideia bem particularizada. Nesse sentido, poder-se-ia trazer alguns estudiosos como os adeptos do pensamento marxista, o filósofo Michel Foucault, Hobbes, Nicolau Maquiavel, Lasswell, Max Weber e outros que tratam da questão. No entanto, nesse artigo será realizada uma apropriação maior do pensamento de Michel Foucault acerca da temática.

Segundo Foucault (2001), “o poder não existe”, o que existe são as relações e práticas de poder. Defende que não existe uma entidade centralizadora do poder. Pelo contrário, ele é construído e exercido em níveis, formas, domínios e extensões variados na sociedade.

Ressalta ainda que muito mais importante do que construir um novo conceito para o poder, seria analisá-lo como prática social que historicamente fora constituído, buscando os inúmeros mecanismos de como ele aparece circunscrito.

A questão do poder fica empobrecida quando é colocada unicamente em termos de legislação, de Constituição, ou somente em termos de Estado ou de aparelho de Estado. O poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado. Não se pode entender o desenvolvimento das forças produtivas próprias ao capitalismo; nem imaginar seu desenvolvimento tecnológico sem a existência, ao mesmo tempo, dos aparelhos de poder. (FOUCAULT, 2000, p. 221)

Analisando essas práticas de poderes na ficção, especificamente no cinema brasileiro, torna-se mister mencionar como ele aparece em diversos momentos do filme, muitas vezes de forma silenciosa e de outras mais palpável. Não se pretende aqui categorizar todas as situações em que se percebe uma relação de poder, mas antes de tudo, trazer algumas passagens que me chamou a atenção e trouxe o meu olhar nessa direção.

Assim, nas variadas entrelinhas de Cidade de Deus, observa-se como essas práticas de poderes estão presentes nos diferentes grupos sociais. No filme os indivíduos desde crianças são expostos às mazelas do mundo e a socialização do sujeito é marcada pelo abandono sócio-político, ou seja, existe a ausência de um olhar social para aquele lugar que assegure uma educação, saúde, segurança e emprego, o que faz com que o jovem, através de uma família não estruturada, busque a sua sobrevivência no crime.

Vale salientar ainda que ao propor uma análise das manifestações de poderes no filme através do percurso de seus personagens, sabia que encontraria diversas condições de exercício em micro-relações de poder. Todavia e pela multiplicidade de atos protagonizada pelos personagens, situarei o estudo em uma das cenas que me provocou um mal-estar: as práticas de poderes sendo exercidas por meio de um indivíduo sobre o outro. Isso se torna mais perceptível numa cena quando Zé Pequeno obriga uma criança a matar outra criança do grupo rival. Essa cena revela a barbárie dos sujeitos e a dramaticidade caótica daquele ambiente subumano.

Continuando o assunto, Foucault (1975) nos apresenta no seu livro Vigiar e Punir estratégias de poder que podem atingir aspectos da vida do indivíduo na sociedade. Para ele, a sociedade disciplinar, através de seu poder panóptico, tem como objetivo uma vigilância contínua de seus indivíduos.

De acordo com esse modelo, o indivíduo é fixado dentro do sistema de produção e passa a construir a sua visão de mundo dentro das normas e saberes ali constituídos. Muitas vezes é abstraído do tempo de sua vida, passando a interessar apenas aquilo que está perto dele.

Essa tese que Foucault sustenta me recorda os espaços construídos para os personagens no filme e que se revela através das ações deles e principalmente das consequências assumidas por serem um produto desse meio.   A visão de mundo daqueles jovens entregues ao tráfico e a marginalidade ficou restrita àquele lugar - triste e vazio.

Mas como toda relação de poder gera implicações que se manifestam no comportamento de seus personagens, a ausência de perspectivas, a violência, a crueldade, a morte, tudo isso comporá o cenário em que é desenhado e projetado o filme. Deve-se frisar também que o personagem Buscapé assumiu um caminho diverso da grande maioria de seus companheiros, encontrando na fotografia a chance para uma mudança de vida.

Por fim, observa-se na trama o cuidado de Fernando Meirelles ao utilizar com sutileza as representações coletivas, a construção do ambiente, as memórias partilhadas e mediadas por um jovem negro da favela, que, através de seu olhar, recria uma realidade no Brasil e para o Brasil. E é através da voz de Buscapé que visualizamos todo o cenário, percepções e sentimentos de seus personagens

Esta posição assumida por este personagem ao longo da análise e das práticas discursivas deixa claro que a intenção do diretor Meirelles ao dirigir o filme foi lançar uma verdadeira provocação no telespectador, de modo que este se percebesse na trama.

É importante mencionar ainda que as relações de poderes aqui constituídas não se esgotam, pois a cada olhar direcionado numa possível releitura, podem ser percebidas outras nuances e pontos que poderão ser retomados, assumindo novos posicionamentos e enxergando com mais clareza o que, de fato, pretende-se mostrar.

REFERÊNCIAS

Cidade de Deus. Disponível em: http://cidadededeus.globo.com/ Acesso em 05 de abril de 2010.

FOUCAULT, Michel. Sobre a história da sexualidade. In: Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001, p.243-276.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1975.

OLIVIERI GODET, Rita. Memória, história e ficção em Viva o Povo Brasileiro de João Ubaldo Ribeiro. In: FONSECA, Aleilton; PEREIRA, Rubens Alves. Rotas & Imagens: literatura e outras viagens. Coleção Literatura e Diversidade Cultural, 2000.


Pós-graduanda do curso Mídias na Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Especialista em Estudos Linguísticos e Literários pela Faculdade Santíssimo Sacramento. Graduada em Letras pela Universidade do Estado da Bahia. 


Publicado por: Rosiane Pimenta Borges

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