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A Natureza em Memórias de um Sargento de Milícias

Este artigo objetiva informar sobre as diversas formas de representação da natureza na obra Memórias de um sargento de milícias.

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RESUMO

Este artigo objetiva informar sobre as diversas formas de representação da natureza na obra Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, com base em uma pesquisa crítico-analítica. Na introdução, apresenta a finalidade e os significados da palavra natureza. Faz, logo após, um comentário sobre os papéis histórico, literário e sociopolítico, mimetizados na obra, e passa para sua análise propriamente dita. Conclui que, no romance, a vida das personagens apreciadoras da liberdade do campo e da harmonia com a natureza sobressai-se em relação à de quem opta pela existência nas grandes cidades, como foi o caso do tirano José Manuel, que veio a falecer após um ataque de apoplexia em virtude da derrota em uma ação judicial. Por fim, tece considerações com a expectativa de que este escorço sobre a obra-prima desse grande escritor sirva de base a que novos e aprofundados estudos sejam produzidos, a partir deste breve trabalho, a respeito da representação da natureza no romance.

Palavras-chave: Representação. Natureza. Memórias de um sargento de milícias.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo tem por finalidade realizar um estudo crítico-analítico do romance Memórias de um sargento de milícias, escrito por Manuel Antônio de Almeida. A crítica visa a expor algumas breves opiniões sobre a classificação da(s) escola(s) literária(s) que influenciaram o autor. A análise voltar-se-á para a forma de estruturação da narrativa com base nos elementos da natureza.

Nesta obra, o autor retrata a classe média e baixa, ao contrário dos romances da época, que narravam os acontecimentos da burguesia. Desenvolve, pela primeira vez, na literatura brasileira, a figura do malandro que se dá bem na vida. Os capítulos são curtos, em geral independentes, pois visavam prender a atenção do leitor.

1.1 Significados da palavra natureza e sua representação

Segundo Tocane, a palavra natureza surge a partir do grego, que se baseou na raiz indo-europeia bheu/bhu, que significava “vir a ser”, “tornar-se”. Daí os gregos criaram as formas verbais referentes a “nascer” e “crescer”, em especial no que se refere aos vegetais. O nome recebeu o acréscimo do sufixo “ti” e passou a designar “substantivos de ação ou estado” (TOCANE [19--], apud BARBOSA, 2005, p. 42).

Esclarece também Barbosa que, no século V d. C, o latim incorporou ao significado do termo natureza três valores: 1º) o dinâmico e ativo, relacionado à geração e ao crescimento, espontâneo e inato; 2º) o estático; e 3º) o normativo (BARBOSA, 2005, p. 43). No presente trabalho, vamos considerar como “naturais”, entre outros, os produtos artesanais, considerados, em especial a partir da década de 60 do século XX, mais conforme a natureza humana, por serem elaborados fisicamente e não mecanicamente (BARBOSA, 2005, p. 44).

Esse autor diz que a relação entre o homem e a natureza é marcada pela ambiguidade.

Em alguns momentos ela serve ao homem e, em outros, por ele é servida, mas a Arte humana que é, por mais se queira dela destacar-se e criar suas próprias leis, segue integrando-a, como o expressa sabiamente o bardo maior, Shakespeare, que afirmou: “A arte que corrige assim a natureza, ou melhor, que a transforma, é sempre a natureza (Conto de inverno, ato IV, cena III), tentando expor o pensamento segundo o qual o homem é também natural e que, portanto, tudo o que ele realiza em face à natureza o é também, mesmo quando se opõe a ela (BARBOSA, 2005, p. 132- 133).

Finalmente, informa (2005, p. 77) que a questão da paisagem, tanto na pintura quanto na literatura é um dos mais impressionantes relacionamentos do homem com a natureza. Em seguida, cita Castagnino (1971) com sua afirmação de que a palavra paisagem “(...) designa, ambiguamente, a cópia pictórica de um lugar natural ou o próprio lugar que oferece, à vista, elementos agradáveis à sua contemplação”. A paisagem, porém, não está restrita à pintura, pois também pode ser vista como a representação da natureza por meio de técnicas da pintura, desenho ou narrativa literária. Mas a paisagem é sempre encontrada na natureza de modo externo a nós. O que nos impressiona é a sua possibilidade de ser ou não harmônica, pois isso depende de nosso estado de alma, segundo Ribon (apud BARBOSA, 2005, p. 78).

2 FORMAS DE REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA NA OBRA

De acordo com Barbosa (2009, p. 99), a representação da natureza na Literatura é fonte de estudos literários de grande interesse. No mundo antigo, ela não passava de “figurante em contextos poéticos ou narrativos”. Na modernidade, porém, a partir da escola romântica, a natureza está presente nas representações de cenas bucólicas de amor, heroísmo, glórias e morte.

Informa Barbosa (2005, p. 17), que, no século XIX, as relações homem x natureza não são estáveis no romance. Para que possamos observar a existência de marcas do contexto histórico, político, social e mesmo linguístico, no corpus estudado, fizemos o levantamento de algumas formas de representação da natureza, em sentido lato no romance. No quadro abaixo, especificamos as diversas possibilidades de representações da natureza na obra em análise, tanto no sentido real da palavra como no figurado.

Pelo que pudemos observar, o narrador explora a natureza, na história, em sentido simbólico, modificador de atitudes, opondo-se a vida do campo à da cidade e na caracterização dos personagens que têm, por vezes, suas atitudes representadas por elementos da natureza. Por vezes, a natureza é um cenário. Noutras ocasiões é um quadro limitativo das ações. Mantém-se fixa, quando se refere ao modo de ser próprio de cada um e também se altera, quando há mudança de ambiente das personagens. Vamos, por etapas, analisar, genericamente esses aspectos, em virtude da limitação que o espaço nos proporciona.

Sobre o simbolismo das paisagens, afirma Barbosa que

Para além da paisagem que, normalmente, é cheia de simbolismos, os homens, no seu dia-a-dia, veem-se obrigados a atravessar a rua, a tomar distintos caminhos, servindo-se de velocidades lentas ou rápidas para ir ao trabalho ou para passear, apressar-se ou introduzir-se nos espaços de luz e sombra, de sol ou de verde, adentrar os jardins, sentir-lhes os odores, ouvir-lhes os murmúrios (...). É provável que diferentes pessoas, frequentando e deslocando-se nos mesmos espaços, da cidade ou do campo, tenham visões (ou outras experiências sensoriais) tão díspares quanto sejam o seu número (BARBOSA, 2005, p. 82).

O canto dos meirinhos, esquina formada pelas ruas do Ouvidor e da Quitanda remetem-nos, logo no primeiro parágrafo da história, após a frase que indica o “tempo do rei”, a uma informação de que as “condições físicas” do lugar eram de opressão judicial, que tinha início com os meirinhos e terminava com os desembargadores, polos opostos que se tocavam e “fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.” (ALMEIDA, 2009, p. 13). Os meirinhos eram o que hoje se chamam oficiais de justiça. Na época, representavam o “poder”, eram temidos e desprezados por todos, em virtude de sua atuação inicial expropriadora dos bens dos cidadãos citados, que continuaria com “o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes” (ALMEIDA, 2009, p. 14).

A palavra “Carontes” destacada, com que o narrador define o caráter de todos esses servidores da justiça, que mais não faziam do que agir em interesse próprio, remete a uma figura mitológica grega: “barqueiro que conduz os mortos ao reino de Hades, mediante o pagamento de uma moeda, o óbolo” (ALMEIDA, 2009, p. 14). A natureza aqui é simbolizada pelas águas do rio atravessadas pelo barqueiro, divisória entre o inferno e o paraíso. Ai de quem não pagasse sua propina. Toda uma corja de opressores cairia sobre ele ou ela.

É curioso que as ruas ainda hoje existem: uma é chamada Ouvidor: “que ou aquele que ouve, ouvinte (...) por extensão, juiz de direito” (Dic. Houaiss); a outra, Quitanda: “local onde se fazem negócios, mercado, praça” (idem). Observa-se do exposto, a utilização pelo narrador de uma figura que extrema não somente a cúpula máxima, como também os espaços mercadológicos da justiça. Ou seja, de um lado, o nome Ouvidor representa o julgador do poder judicial; do outro a Quitanda, como possibilidade de acordo monetário; numa das quatro esquinas das duas ruas, os meirinhos, seus representantes se reuniam.

Uma outra curiosidade é que a quitanda representa, também, o mercado de frutas, verduras e outros produtos da natureza, que então se expunham à exploração econômica. Era, portanto, um ambiente modificador de atitudes e que simbolizava uma oposição entre a vida do campo (Quitanda) e a da cidade (Ouvidor).

Há também uma oposição mar e terra logo no primeiro capítulo que inicia a história. Refere-se ao namoro entre Leonardo Pataca e Maria Hortaliça, começado na viagem marítima que faziam de Portugal ao Brasil. Relacionamento fruto de uma pisadela e um beliscão, que os tornaram amantes, e cuja conclusão se deu com o nascimento do filho quando saltaram em terra, cerca de oito meses depois (ALMEIDA, 2009, p. 15). A natureza marítima exercera os efeitos da “pisadela e do beliscão”, que se concretizaram em terra com a união definitiva dos amantes e a geração e nascimento do filho concebido “no mar”.

Quando saltaram em terra, começou a Maria a sentir certos enojos; foram os dois morar juntos; e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase 3 palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito(ALMEIDA, 2009, p. 15).

A oposição campo cidade está expressa na parte final do primeiro capítulo, quando se canta e dança o minuete, composição musical surgida no século XVI, na aristocracia francesa, acompanhada de dança. A rabeca, instrumento musical era tocada e a letra cantada expressava a vida do campo pelo simbolismo do vinho, extrato do mosto da uva, fruto da videira e, por extensão, sumo de diversos vegetais:

Quando estava em minha terra,

Acompanhado ou sozinho,

Cantava de noite e de dia

Ao pé dum copo de vinho

A bênção da madrinha conclui o capítulo com o simbolismo do raminho de arruda, produto vegetal colocado no cinteiro do menino. A arruda é uma das diversas plantas que têm propriedades medicinais e de forte cheiro, muito utilizada em rituais religiosos, possui folhas e flores verde-amarelas. É também o nome de uma árvore, que representa “um dos temas simbólicos mais ricos e mais difundidos”. Segundo Chevalier e Gheerbrant, a árvore,

Símbolo da vida, em perpétua evolução e em ascensão para o céu, ela evoca todo o simbolismo da verticalidade; veja-se, como exemplo, a árvore de Leonardo da Vinci. Por outro lado, serve também para simbolizar o aspecto cíclico da evolução cósmica: morte e regeneração. Sobretudo as frondosas evocam um ciclo, pois se despojam e tornam a recobrir-se de folhas todos os anos. (...)

A associação da Árvore da Vida com a manifestação divina encontra-se também nas tradições cristãs. Pois existe analogia e mesmo reintrodução do símbolo entre a árvore da primeira aliança, a árvore da vida da Gênese, e a árvore da cruz ou árvore da Nova Aliança, que regenera o Homem (...) (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 84, 86).

2.1 Manifestação da natureza nas ações dos personagens

O herói da história, considerado endiabrado, em verdade, em toda a história manifesta sua integração ou desejo desta com a natureza, o que explica sua inquietude e diabruras. Senão vejamos, “adotado” pelo padrinho aos sete anos, após o abandono dos pais, o barbeiro cismou em torná-lo padre, embora a fama de traquinas de Leonardo corresse a vizinhança. Aos nove anos, o padrinho o chama e lhe diz que ele poderia fartar-se de travessura por aquele resto de semana, pois a partir da segunda-feira da semana seguinte ele iria aprender o bê-a-bá com o barbeiro.

O menino não gostou, menos ainda quando soube que deveria frequentar a missa aos domingos, pois o padrinho desejava que ao crescer o afilhado fosse padre.

Essa influência paterna ou materna sobre o destino eclesiástico futuro da criança de ambos os sexos, em geral em virtude de promessa, era tão comum à época que, no romance Dom Casmurro, Machado de Assis também a mimetiza em D. Glória, mãe de Bentinho, que obriga o filho a ir para o seminário, onde permaneceu um ano, também na tentativa de torná-lo sacerdote, contra a vontade do jovem, quando tinha quinze ou dezesseis anos. Isso era uma violência contra a natureza da criança que, antes mesmo de nascer, já estava destinada a agir forçosamente em desacordo com sua natureza humana.

Lembrando-se da permissão do padrinho para “fartar-se de travessuras”, Leonardo aprontou todas... Por duas ou três vezes, o padrinho o achou montado a cavalo em cima do muro que dividia o quintal da casa do vizinho. Ao anoitecer, “sentado à porta da loja, viu ao longe (...) a via-sacra do Bom Jesus”, tipo de procissão, iluminada por lanternas e tochas. E lá foi o menino atrás da via-sacra, com intenção não de rezar, mas de fazer molecagens com outros meninos, que corriam atrás da procissão com zombarias e provocações, como a da bola de cera amarrada a um barbante, que atiravam nas cabeças calvas e depois puxavam rapidamente para ninguém descobrir quem fora o autor da brincadeira. (ALMEIDA, 2009, p. 25, 26). Foi a primeira noite passada por Leonardo fora de casa.

A narração dessa primeira noite fora de casa e das preocupações e buscas do padrinho somente vão recomeçar no capítulo 6, estávamos no capítulo 3, mas os capítulos 4 e 5 vão relatar as desventuras do Leonardo Pataca, pai do Leonardo que, após ser abandonado pela mulher e ambos terem rejeitado o filho nas mãos do padrinho, agora se metia com uma cigana e um curandeiro e acabava preso pelo major Vidigal. É interessante que, mais à frente, no capítulo 10 da primeira parte do romance, ao pedir ao tenente-coronel para livrá-lo, Leonardo Pataca, ao lhe ser dito que ele perdera o juízo, responde ao oficial: “— Fugi de uma saloia e fui cair numa cigana... tem razão!” (ALMEIDA, 2009, p. 50). Ambas as mulheres representam a natureza má. A saloia é a mulher camponesa, rústica, do interior de Portugal, que gozava de má fama, já a cigana representa o povo sem terra fixa, que vive viajando e está sempre acampado em plena natureza, o que aqui é tido como algo negativo.

Voltando ao Leonardo, percebe-se que, desde os nove anos, o menino tinha um espírito aventureiro e gostava da rua, do ar livre da natureza. O autor relata que, nessa aventura, Leonardo fez amizade com dois outros meninos, moradores do Largo do Rossio, também chamado, tempos atrás, de Campo dos Ciganos. Os primeiros amigos de Leonardo foram chamados pelo narrador de “vagabundos”, por gostarem da vida ao ar livre, em especial no Campo dos Ciganos, e isso atraiu o menino, que também gostava dessa vida moleque (ALMEIDA, 2009, p. 34, 35).

Na escola onde o padrinho o colocou, quase à força, Leonardo aprontou bastante, mas ao fim de dois anos aprendeu “a ler muito mal e escrever pior ainda”. Esse foi todo o estudo de Leonardo. No colégio, o mestre corrigia seus alunos com a aplicação da palmatória nas mãos por qualquer erro. Como Leonardo vivia aprontando, era o que mais apanhava. Um detalhe interessante é a citação do canto da tabuada feita pelas crianças, “espécie de cantochão monótono e insuportável, mas de que os meninos gostavam muito”. Suas vozes misturavam-se com o “canto dos passarinhos” e “faziam uma algazarra de doer os ouvidos” (ALMEIDA, 2009, p. 57 e 59).

Observa-se, contudo, que aquela não era a “praia” de Leonardo. Ele passou a frequentar a igreja, não por vontade de tornar-se padre, como desejava o padrinho, mas porque travara conhecimento com um menino sacristão e ambos aprontaram, não somente com a vizinha de Leonardo, como com o próprio padre, depois que Leonardo passara a também auxiliar nos serviços da igreja, também como sacristão. A intenção do menino, segundo o narrador, era dupla: fazer a vontade do padrinho e sair da escola. Mas a vontade real era, junto com seu colega, também sacristão, divertir-se a mais não poder, culminando com a desmoralização do padre, preso pelo major Vidigal quando participava de uma festa de aniversário da cigana, sua amante, também desejada pelo velho Leonardo Pataca.

Leonardo cresceu sendo considerado vadio, inclusive pelo narrador, por gostar de viver ao ar livre e divertir-se aprontando brincadeiras de todo o tipo com outras pessoas. Foi quando conheceu Luisinha, sua primeira paixão. O ponto alto do namoro entre os dois aconteceu quando a tia dessa moça e o compadre levaram os dois jovens ao “Campo” para ver a queima de fogos, o que deixou a menina deslumbrada e falante e deu alguma esperança ao Leonardo de declarar-lhe seu amor.

O problema é que, após todo esse acontecimento feliz, que despertara em Leonardo uma viva paixão por Luisinha, a moça voltou a mostrar-lhe indiferença, como ocorrera em seu primeiro encontro. É então que surge José Manoel, futuro marido da moça, o qual a maltrata bastante, mas logo morre, vítima de uma apoplexia após se dar mal numa demanda judiciária.

Esse aspecto é importante, na narrativa, pois por esse tempo Leonardo conhece Vidinha, em pleno campo, após fugir de casa, e passa a morar com ela, seus dois primos e umas tias velhas, que também residiam na casa. Eis o cenário bucólico que emoldura a passagem em se conheceram Leonardo e Vidinha, após a fuga do rapaz motivada por uma discussão com Chiquinha, nova mulher de seu pai, e ser corrido por este, de espada na mão:

Andou a bom andar por largo tempo, e foi dar consigo lá para as bandas dos Cajueiros; cansando, ofegante, sentou-se sobre umas pedras (...). Tinha gasto largo tempo nessa meditação, quando foi repentinamente acordado por umas poucas de gargalhadas partidas detrás de umas moitas vizinhas (...). Voltou-se, nada viu; guiado por um rumor que ouvia, começou a procurar, e sem grande trabalho viu, atrás de umas moitas um pouco altas, uns poucos de rapazes e raparigas, que, assentados em uma esteira entre os restos de um jantar, debruçavam-se curiosos sobre dois parceiros que, com um baralho de cartas amarrotado e sujo, desencabeçavam uma intrincada partida de bisca! (ALMEIDA, 2009, p. 126).

Leonardo encontrou, em plena natureza, como gostava, o ex-sacristão, seu amigo; este apresentou-lhe a companheira, outros amigos e Vidinha. Emoldurado pelas ervas, moitas e pedras, nesse cenário campestre, Leonardo, antes de se retirarem para o lar da moça com os amigos, ouviu-a cantar, ao som da viola, que ela mesma tocava, uma melodia de amor. Cenário perfeito para despertar nele uma súbita paixão por Vidinha e esquecer completamente o amor de Luisinha, em quem pensava logo que chegara a esse campo. Verifica-se, pois, no episódio, uma completa interação entre seres humanos e natureza.

Essa vida descompromissada, livre, emoldurada pelo bucólico e por outras pessoas que gostam, como ele, de cantar e aprontar com as demais é que fazia o Leonardo feliz. Saindo dali foram para a casa das duas irmãs, de cerca de 40 anos cada uma; a primeira era mãe de três filhas, entre as quais a que vivia com o ex-sacristão, chamado Tomás da Sé, a segunda sem pretendentes, a terceira Vidinha, que também era disputada por dois dos três irmãos, filhos da segunda senhora.

As semanas se passaram e Leonardo foi declarado agregado na casa das irmãs, uma das quais mãe de Vidinha, com que ele passou a viver. Enquanto isso, José Manoel consegue safar-se de todas as intrigas armadas contra ele e casa-se com Luisinha, tornando-a, entretanto, infeliz.

A vida malandra e natural do rapaz recomeça, pois, e, após várias peripécias, em que se envolve com o major Vidigal, arranja um emprego numa Ucharia (dispensa do rei), para não ser preso por vadiagem. Depois, separa-se de Vidinha, que se junta com um toma-largura, após uma suspeita do envolvimento de Leonardo com a mulher deste. Despedido e desempregado, é preso pelo major Vidigal e é transformado pelo major em granadeiro, espécie de soldado raso da época. A vida de aventuras e de molecagens do rapaz recomeça, pois, quando está a serviço do major, apronta uma série de arruaças, inclusive com este, e acaba sendo preso novamente.

Enquanto isso, Luisinha é presidiária em sua própria casa, pois José Manuel, marido tirano, a deixa trancada e triste o dia inteiro, sem poder sair à rua.

Depois que se havia mudado da casa de D. Maria, nunca mais Luisinha vira o ar da rua senão às furtadelas, pelas frestas da rótula; então chorava ela aquela liberdade que gozava outrora; aqueles passeios e aquelas palestras à porta em noite de luar; aqueles domingos de missa na Sé, ao lado de sua tia com o seu rancho de crioulinhas atrás; as visitas que recebiam, e o Leonardo de quem tinha saudades, e tudo aquilo enfim a que não dava nesse tempo muito apreço, mas que agora lhe parecia tão belo e tão agradável (ALMEIDA, 2009, p. 184).

Vê-se, portanto, que o que fazia feliz a moça eram os momentos de liberdade, emoldurados pela natureza. Tímida, como era comum à época acontecer com as moças, aceitara a imposição da tia para casar-se com José Manuel. Com isso, renunciara ao amor de Leonardo, a quem amava, e, por certo, lhe proporcionaria uma vida de aventuras felizes, em plena natureza, ainda que casada, para agora viver com um marido que, contrariamente ao outro, vivia nos tribunais da cidade e privava-a da liberdade. Observa-se assim, nessa passagem a oposição velada entre a vida insulada, triste e vazia da cidade contrapondo-se à existência livre, proporcionada pelo convívio com a natureza, com os “fogos do Campo” que tanto a entusiasmaram tempos atrás.

Mas o mundo gira, e pur si muove, com ele as coisas mudam. Entristecida com as atitudes cruéis de José Manuel para com a sobrinha, em conversa com a comadre, D. Maria sentencia que os desembargadores haveriam de dar-lhe o gosto da vingança contra ele (ALMEIDA, 2009, p. 185). E isso realmente ocorreu: “O caso era o seguinte: José Manuel entrara para casa em braços, tendo sido acometido na rua de um violento ataque apoplético ao voltar do cartório, onde tivera uma grave contestação com o procurador de D. Maria, por causa da demanda que entretinham.” (ALMEIDA, 2009, p. 194). Daí, em poucos dias, faleceu, deixando Luisinha livre para casar-se com Leonardo que, com a ajuda da madrinha, de D. Maria e de Maria-Regalada, conseguem não somente que o major Vidigal solte o rapaz, que reata com Luisinha, como também que Leonardo seja promovido a sargento de milícias, posto no qual pôde se casar com esta.

A influência da vida natural sobre a vida urbana saiu vencedora no romance, e, se o que parecia um bem (o casamento com o esperto José Manuel com Luisinha) tornou-se um mal, o que se assemelhava a um mal (a vida malandra de Leonardo, com ênfase na natureza) veio a tornar-se um bem com a morte daquele e o casamento deste com a viúva.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O único romance de Manuel Antônio de Almeida, escrito quando o autor estava com apenas 22 anos, é, de fato, uma verdadeira obra-prima. Nele, após uma releitura atenta e análise tão minuciosa quanto possível aos limites deste trabalho, observamos o modo singular de como o narrador consegue opor os elementos da natureza aos da vida urbana com grande superioridade daqueles sobre estes.

Pudemos observar, também, um aparente (e proposital) exagero do narrador e das personagens no julgamento do Leonardo, herói da história, por sua natureza burlesca, considerada, inclusive pela vizinha que o viu nascer, como produto de seus “maus bofes”. No entanto, o que lhe proporcionou um final feliz foi justamente o fato de amar Luisinha, que, como ele, encantava-se com a vida ao ar livre. Lembramos que o momento em que a moça mais ficou extasiada foi o da ida ao “Campo” para ver os fogos.

Esperamos que este breve escorço sobre a representação da natureza, no romance Memórias de um sargento de milícias possa estimular novas e fecundas pesquisas que, mais uma vez, demonstrem a riqueza da mimesis criativa desse jovem autor, cuja obra, seguramente, teve grande influência na escola realista no Brasil. Aqui, o que se pode observar é que, no contraste entre a vida enclausurada da cidade e a liberdade do campo, esta última prevaleceu.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Martin Claret, 2009.

______. ______; biografia e introdução de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. 1. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BARBOSA, Sidney. A representação da natureza no romance francês do século XIX. 2005. 231 f. Tese (Título de livre-docência) Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Araraquara, SP.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Colaboração de BARBAULT, André et ali. Tradução: Vera da Costa e Silva et alDicionário de símbolos. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução de Paulo Henriques Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 


Publicado por: Jorge Leite de Oliveira

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