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A Embaixatriz do Brasil: fantasia como fuga da realidade na Crônica de François Silvestre

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A Embaixatriz do Brasil: fantasia como fuga da realidade na Crônica de François Silvestre

LUCENA, Afrânio Gurgel de – UERN*.


Contextualizando a Crônica: A Embaixatriz do Brasil


A Crônica A Embaixatriz do Brasil, de François Silvestre de Alencar está inserida na coletânea O Mel de Benquerê, publicado em 2003. O livro é composto por uma expressiva variedade de Crônicas que tratam de particularidades de algumas figuras do universo potiguar fincados nas brenhas ressequidas do sertão ou abraçadas pela brisa atlântica da capital.

Dentre tantos tipos, a personagem feminina, inspiradora comum no mundo da crônica, se faz presente de forma diversificada, mostrando que a mulher, além de sua beleza fecunda, tem uma personalidade centrada na dualidade do ser real e ficcional.

François Silvestre é um escritor preocupado em resgatar as belezas culturais de sua gente, lapidando figuras que poderiam simplesmente desaparecer com os caprichos do tempo, porém sobrevivem nas lápides de suas crônicas, mostrando que a ficção é uma vaidade criada pela sociedade e que a história oportuniza para a literatura oral e escrita desenvolver e, conseqüentemente, apresentar de forma verossímil a realidade. Por não se tratar de autor canônico, é impossível não apresentá-lo. François teve uma infância marcada pela rudeza que encanta o sertão nordestino e pela a brutalidade da vida, tendo em vista a morte trágica de seu pai. Nascido em Viçosa, estado do Rio Grande do Norte, uma pequena cidade oestana, protegida pela imponente beleza das serras de Portalegre e Martins. Ladeada pelas águas dos riachos da Forquilha e o da Bica. Teve sua formação escolar inicial no interior. Em 1965 foi morar na cidade do Natal para cursar o científico. Aventurou-se no deleite nordestino, o Sul do Brasil. Retornou a capital potiguar e ingressou na Faculdade de Direito. Militou no movimento estudantil e político. Foi preso diversas vezes acusado de sub-versão, nessas idas e vindas na cadeia tardou em concluir o bacharelado. Formado em direito, foi ser jornalista. Atua como colaborador para diversos jornais. Como escritor, publicou cinco livros: Luz da noite ao vento norte –1979 (poesia); Rio de Sangue – 1981 (contos); Dormentes: a serra da festa encantada – 1983 (romance); A pátria não é ninguém – 2002 (romance); e, Mel de Benqueré – 2003 (crônicas e causos).

A Embaixatriz do Brasil**

Dona Severina nunca foi mulher de Embaixador, mas é Embaixatriz do Brasil. Nunca foi nomeada para qualquer cargo administrativo, mas é Administradora Geral do Estado. Nem sabe onde fica a Inglaterra, mas é prima legítima da Rainha de lá: Diana era apenas uma usurpadora da coroa de herdeira que é de dona Severina.

Com sua faixa sambada cobrindo parte do peito ressecado de pobreza e solidão, dona Severina espanta a miséria com seus olhos de fogo azuis.
"Aluízio, eu fiz governador, mas me arrependi. Ele não aprendeu o que eu ensinei”. Ela define assim o Ministro Aluízio Alves. “Dinarte era velho, não queria lições”. Era assim Dinarte Mariz. “O Monsenhor não devia ter largado a batina, eu disse a ele que tivesse paciência que ia falar com o papa”. Pois é, dona Severina também tem suas relações no Vaticano. “Esse papa não é comunista, eu disse ao General, mas o General é meio bronco e não acreditou”. “Eu tirei Agnelo da prefeitura porque ele tava querendo perseguir Pedro Lucena”. Aí ela pára pra tomar um pouco de caldo-de-cana, mas suja um pouco a faixa desbotada, sacode o molhado e continua. “Mas eu vou deixar ele mandar em Parnamirim, só até eu descobrir que ele não vai queimar o mercado de lá.

Dona Severina mistura as conversas mas não mistura nenhum assunto com política. E Djalma Marinho? Eu quis saber. “Esse num dizia nada que a gente entendesse, por isso eu não deixei ele assumir. Mandei ele aprender a falar”. “Com quem?” Eu perguntei. “Com quem o quê?” Ela respondeu.
“Você conhece o padre Cortez?” Ela me perguntou. Respondi que conhecia. Então ela me contou que proibira o padre Cortez de celebrar a missa de corpo presente de Márcio Marinho. “Por quê?” “Porque Márcio morreu depois de discutir com o padre Cortez lá na assembléia”.
“A senhora ta lembrada de mim?” “Quem é você?” Eu disse meu nome ai ela retrucou: “Eu conheci um rapaz com esse nome, lá na Casa do Estudante, mas ele era magrinho, coitado, passava fome e ainda era intrigado com o General. Mas eu num deixava prender ele não”. Desistir de querer exibir-me.
“Dona Severina, como andam suas ligações políticas no atual governo?” Ela pensou um pouco e respondeu: “Eu disse a esse menino, o Garilbadi, que podia botar água nos canos. Faz uma semana que não chega água lá em casa”. “Esse tal de Bira Rocha eu vou mandar sair do governo”. Eu quis saber por quê. “Porque eu quero”.
“Eu vou colocar no lugar de Bira esse galego Ticiano”. Eu quis saber se era Ticiano Duarte. “Esse mesmo”. Aí ela fez vários elogios a Ticiano e sentou a pua em Bira Rocha.
Mas eu não podia terminar a entrevista sem fazer referência a Romildo Gurgel. Certa vez Romildo simulou um ataque sexual a dona Severina para ver-se livre dela. Ela não suportou o trauma. Quando eu perguntei sobre Romildo. Ela me olhou com ira e disse: “Você não é jornalista coisa nenhuma. “Vou lhe demitir do jornal”. E saiu apressadamente, limpando a mancha de caldo-de-cana que molhou a faixa pobre, no seu peito ressequido e sem juízo de flor-de-seda.

A crônica no sentido atual faz com que a literatura tenha o prazer de uma produção de estilo particular, bem ao estilo nacional. Nada parecido com o sentido original: narrativa. Vejamos o que diz Afrânio Coutinho – (1976: p. 306).

Crônica, cronista (do grego cronos, Tempo) relacionava-se com o relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar. Desapareceu esse conteúdo, ficando a palavra para designar as pequenas produções em prosa, de natureza livre, em estilo coloquial, provocadas pela observação dos sucessos cotidianos ou semanais, refletidos através de um temperamento artístico.


A crônica e seu contexto teórico

A crônica busca na narrativa de um fato sua construção concisa, lúdica e literária. A representação do cotidiano pode aparecer para o jornalismo com dois aspectos. Como diz Afrânio Coutinho (1976: p. 305).

Enquanto o jornalismo tem no fato seu objetivo, seu fim, para a crônica o fato só vale, nas vezes em que ela utiliza, como meio ou pretexto, de que o artista retira o máximo partido, com as virtuosidades de seu estilo, de seu espírito, de sua graça, de suas faculdades inventivas.


Frente às observações minuciosas dos fatos, das pessoas e do seu contexto social pelo cronista e de sua perspicácia de extrair do real a essência do belo e com inspiração transforma-la em arte. Assim damos seqüência com Coutinho (1976: p. 305), teorizando o cerne da crônica: “A crônica é na essência uma forma de arte da palavra, a que se liga farta dose de lirismo. É um gênero altamente pessoal, uma reação individual, íntima, entre o espetáculo da vida, as coisas, os seres”.

A crônica é um gênero literário que atende aos preceitos velozes da comunicação moderna, sua estrutura é compacta e objetiva, portanto, uma opção, para um leitor moderno preocupado em não perder tempo. A leitura deste gênero não evidencia percas de tempo, mas ela se sobrepõe no tempo registrando algo ou alguém que, simplesmente, desapareceriam sem os caprichos da ficção. Podemos observar a relação e transposição do tempo pela crônica nas palavras da escritora Angélica Soares ( 2005: P. 64 ).

Ligada ao tempo (chrónos), ou melhor, ao seu tempo, a crônica o atravessa por ser um registro poético e muitas vezes irônico, através do que se capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas. Polimórfica, ela se utiliza afetivamente do diálogo, do monólogo, da alegoria, da confissão, da entrevista, do verso, da resenha, de personalidades reais, de personagens ficcionais..., afastando-se sempre da mera reprodução de fatos. E enquanto literatura, ela capta poeticamente o instante, perenizando-o.

Alguns aspectos da Crônica A Embaixatriz do Brasil: Dona Severina

A construção da Crônica se dar a partir de uma figura folclórica das ruas do Natal: Dona Severina. Uma mulher anciã real que sobrevive entre fantasias de poder e influências nos meios sociais e políticos.

O autor começa a crônica mostrando, de forma chamativa para a feitura, o que Dona Severina é, sem nunca ter sido, uma maneira para prender a atenção do leitor e fazê-lo buscar descobrir quem é essa mulher tão interessante e recheada de “importância”.

Dona Severina nunca foi mulher de Embaixador, mas é a Embaixatriz do Brasil, nunca foi nomeada para qualquer cargo administrativo, mas é administradora geral do Estado. Nem sabe onde fica a Inglaterra, mas é prima legítima da Rainha de lá:...

A partir deste ponto, é visível a aspecto narrativo da crônica. Trata-se de um trabalho de observação de uma figura real: dona Severina – abandonada socialmente e desrespeitada na sua condição de idosa. É uma figura fictícia: A Embaixatriz do Brasil – criada para sufocar as indiferenças da vida. O autor apresenta um retrato forte da personagem delgada, porém resistente. Uma mulher simples que abandona o seu “eu” real, criando um rotulo que vai marcar sua existência subjetiva e ficcional.

Com sua faixa sambada cobrindo parte do peito ressecado de pobreza e solidão, dona Severina espanta a miséria com seus olhos de fogos azuis.

Na seqüência François molda o texto usando fragmentos da fala da Embaixatriz, onde ela mostra com grande particularidade a “influência” que tem junto aos grandes baluartes da política potiguar; e, inclusive de forma hilária, há também relações com o Vaticano. Vejamos seus posicionamentos:

“Aluízio, eu fiz governador, mas me arrependi, ele não aprendeu o que eu ensinei”.
(...)


“O Monsenhor não devia ter largado a batina, eu disse a ele que tivesse paciência que eu ia falar com o Papa”.

(...)


“Esse Papa não é comunista, eu disse ao General, mas o General é meio bronco e não acreditou”.

(...)

Seguindo, observamos que as falas de dona Severina eram estimuladas por meio de perguntas. Para tanto, o cronista se apresenta como jornalista, mas ao final ele meche com o temperamento “autoritário” da Embaixatriz do Brasil fazendo uma pergunta sobre um antigo desafeto que “simulou um ataque sexual” a ela. Raivosa concluiu dizendo:


“Você não é jornalista coisa nenhuma. Vou lhe demitir do jornal”.
(...)

E saiu apressadamente, limpando a mancha de caldo-de-cana que molhou a faixa pobre, no seu peito ressequido e sem juízo de flor-de-seda.



Enfim, depois de sentir o “poder” influente de dona Severina: A Embaixatriz do Brasil, Alencar conclui de forma magnífica a crônica imortalizadora de uma personagem da vida real que poderia ser apenas, mais uma a viver e padecer a margem da contemporaneidade social. A expressão: “... sem juízo de flor-de- seda.”, mostra a capacidade que o autor usou para justificar metaforicamente a beleza ingênua e sensível da protagonista, uma mente de uma alienação sem maldade, tranqüila e inocente; marcada pela beleza de ser nobre como uma flor.

* Especialista em Lingüística Aplicada. Especializando em Literatura e Estudos Culturais. Professor do Departamento de Letras – DL. Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia – CAMEAM. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN
** A Crônica foi transcrita na íntegra para o corpo do trabalho.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALENCAR, François Silvestre de (2003). O Mel de Benquerê. Natal: Sebo Vermelho.
TCOUTINHO, Afrânio (1976). Introdução à Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil.
SOARES, Angélica (2005). Gêneros Literários. São Paulo: Ática.


Publicado por: Afrânio Gurgel de Lucena

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