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Os escravos que os escravos tinham

Confira aqui uma visão sobre os escravos que os escravos tinham.

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Muito é visto e estudado nas escolas o tema do negro e da escravidão no Brasil, ao longo dos séculos, a história brasileira virou as costas para o papel dos africanos e seus descendentes na administração da escravidão, tanto no Brasil como na África.

Tendo como princípio maior mostrar o que realmente aconteceu no período colonial questionando a visão didática empregada nos livros e na maioria da construção historiográfica do Brasil, não se pretende, entretanto, deixar de lado os maus tratos e a subjugação dos povos europeus para com os negros escravizados, muito pelo contrário, deve-se interpelar o massacre pelo qual esses povos passaram pela falta de liberdade e trabalho compulsório, porém muito importante também é ter uma visão ampla e abrangente sobre essa questão mostrando os negros, muitas vezes, exercendo um papel principal na repercussão da escravidão.

A escravidão Africana existia muito antes da escravidão Européia, desde o século VIII reinos africanos do Deserto do Saara logo ao sul capturavam e vendiam os seus prisioneiros aos Árabes ao norte ligados por seis rotas de comércios. Não eram só vendidos escravos como também algodão, marfim e ouro comprando e trocando por sal, tecidos e joias. No Reino de Kano, na atual Nigéria em 1471, quando os europeus chegaram, a riqueza do local, graças a venda do ouro e escravos, surpreenderam os navegadores. Vendia-se escravos também como forma de pagamento de dívidas e sobretudo como transição comercial, outro Império muito conhecido pelas suas riquezas obtidas pela escravidão foi o Império de Ashanti, com Palácios enormes construídos graças ao dinheiro da escravidão.

A escravidão africana se configurou como cruel e desumana, segundo a historiadora Marina de Melo e Souza:

"Desde os tempos mais antigos, alguns homens escravizaram outros homens, que não eram vistos como seus semelhantes, mas sim como inimigos e inferiores. A maior fonte de escravos sempre foram as guerras, com os prisioneiros sendo postos a trabalhar ou sendo vendidos pelos vencedores. Mas um homem podia perder seus direitos de membro da sociedade por outros motivos, como a condenação por transgressão e crimes cometidos, impossibilidade de pagar dívidas, ou mesmo de sobreviver independentemente por falta de recursos. [...] A escravidão existiu em muitas sociedades africanas bem antes de os europeus começarem a traficar escravos pelo oceano Atlântico.(SOUZA, 2010)."

Com a chegada do Europeus nas costas Africanas o Fluxo do comércio escravista só aumentou, os Reinos Africanos antes já enriquecidos pelo comércio escravagista ganharam ainda mais com a demanda dos europeus. Monopolizando praticamente todo o sistema escravagista esses reinos atacavam ainda mais outros reinos para poder escravizar e vender os inimigos de guerra. A participação da Europa se resumia nos fortes que foram feitos para embarcar os escravos comercializados para os outros continentes, o trabalho de forjar guerras, capturar, levá-los ao litoral e vendê-los aos Europeus eram feitos pelos próprios negros.

Uma das razão para o qual os escravos eram capturados do outro lado do atlântico foi mencionado por Boris Fausto historiador e cientista político brasileiro no livro História concisa do Brasil no qual ele fala:

"A principal razão reside no fato de que o comércio internacional de escravos, trazidos da costa africana, era em si um negócio tentador, que acabou se transformando no grande negócio da Colônia. […] O tráfico representava, pois, uma fonte potencial de acumulação de riqueza e não apenas um meio de prover de braços a grande lavoura de exportação."(FAUSTO, 2011).

Os maus tratos empregados nos escravos tanto na captura, como na venda, na exportação e no decorrer do tempo do escravo com seu dono sempre foi abordado como cruel e desumano por partes dos historiadores. Uma bibliografia achada recentemente de um escravo chamado Mahommah Gardo Baquara (1854) retrata fielmente através do relato do próprio escravo como era o tratamento por parte dos seus senhores e comerciantes:

"(…) Houve um pobre companheiro que ficou tão desesperado pela sede que tentou apanhar a faca do homem que nos trazia água. Foi levado ao convés, e eu nunca mais soube o que lhe aconteceu. Suponho que tenha sido jogado ao mar(…)Fomos arremessados, nus, porão adentro, os homens apinhados de um lado, e as mulheres de outro. O porão era tão baixo que não podíamos ficar de pé, éramos obrigados a nos agachar ou nos sentar no chão. Noite e dia eram iguais para nós, o sono nos sendo negado devido ao confinamento de nossos corpos."

Baquaqua foi um ex-escravo nascido em Zooggoo na África Central, um reino tributário do reino de Bergoo, nasceu entre 1820 e 1830, foi vítima de uma emboscada utilizada pelos comerciantes negros para capturar escravos, foi transportado para Daomé onde em 1845 foi levado para Pernambuco e comprado por um padeiro. O relato da experiência de Baquaqua continua em seu livro “An interesting narrative Biography of Mahommah G. Baquaqua”(“Uma interessante narrativa: biografia de Mahommah G. Baquaqua”, em tradução livre) mostrando como eram tratados os negros antes e durante de embarcá-los nos navios.

"Enquanto estivemos nesse lugar, os escravos foram enjaulados, colocaram-nos de costas para a fogueira e deram ordens para não olharmos à nossa volta. Para assegurarem de nossa obediência, um homem se postou à nossa frente com um chicote na mão pronto para açoitar o primeiro que ousasse desobedecer, outro homem circulava com um ferro quente e nos marcava como a tampas de barril ou a qualquer outro objeto inanimado(...)Quando estávamos prontos para embarcar fomos acorrentados uns aos outros e amarrados com cordas pelo pescoço e assim arrastados para a beira mar(...)Quando qualquer um d nós se tornava rebelde sua carne era cortada com uma faca e o corte esfregado com pimenta e vinagre para tornar-se pacífico."

(BAQUARA, 1854, p.270).

Baquaquá ficou em Pernanbuco durante dois anos, como escravo trabalhou em muitas coisas, dentre elas como pedreiro carregando pedras, aprendeu Português e exerceu trabalhos reservados para escravos inteligentes e de confianças. Foi levado para o Rio de Janeiro e em 1847 em um navio de remessa de café chegou nos Estados Unidos, o Navio foi abordado por abolicionistas que o ajudaram a fugir, logo depois da fuga foi Preso e enviado para o Haiti onde viveu com um reverendo chamado Judd, converteu-se ao cristianismo e em 1848 retornou aos Estados Unidos ingressando na escola New York Central College, em McGrawville, Em 1854 foi para o Canadá onde no mesmo ano publicou sua bibliografia por Samuel Downing Moore.

Em uma parte do seu livro Baquaquá retrata a chegada dele aos Estados Unidos:

"(…) Foi uma encomenda de café para Nova York que mudou a minha vida completamente. Naquela época, os estados do Norte dos Estados Unidos já tinham abolido a escravidão, A primeira palavra que meus dois companheiros e eu aprendemos em inglês foi F-R-E-E (L-I-V-R-E); ela nos foi ensinada por um inglês a bordo e, oh!, quantas e quantas vezes eu a repeti‘ (…). "(GLOBO, 2014).

Muitos escravos que foram vítimas das mesmas crueldades que Baquaquá e que conseguiram a liberdade tomaram caminhos inversos como é visto na trajetória do ex escravo Francisco Félix de Souza. Francisco passou de escravo para o maior traficante de escravos do Brasil no final do século XVIII. Não se sabe ao certo como Francisco conseguiu a liberdade, supostamente comprando sua própria carta de alforria ou mesmo ganhando de algum amigo rico que ele conquistou. Francisco foi apelidado de

“Zé Alfaiate “ pois havia trabalhado costurando tecidos, no entanto ao conseguir a liberdade seguiu pelo mesmo caminho no qual o fez escravo, voltou a África começou a trazer negros escravizados para o Brasil, A vida de Francisco virou um romance, O vice-rei de Udá, de Bruce Chatwin e um Longa feito em 1987 na Alemanha chamado Cobra verde, nas mãos de Werner Herzog.

Em um trecho da Revista Pesquisa Fapesb, Carlos Haag (2004) fala a trajetória de Francisco:

"Apesar da carência de recursos, Félix beneficiava-se de um esquema comercial comum a outros atravessadores de escravos: recebia-se o pagamento em negros adiantado dos africanos para entregar, no futuro, armas e outros artigos. O tempo dava a chance para o giro de capital com o agenciamento de cativos."

A  correspondência  dos  traficantes  quase  não  nos  deixa  perceber  que  a mercadoria de que trata são seres humanos", explica o historiador. Diante de um mercado organizado como aquele, o brasileiro prosperou em Ajudá como intermediário e armazenador de negros, prática que agilizou a compra de escravos, pois esses eram embarcados no maior número possível e no menor tempo possível. Lucros certos e fartos.

Através da comercialização de escravos Francisco conseguiu poder, nobreza e uma fortuna calculada em US$ 120 milhões, que fez dele um dos três homens mais ricos do mundo. Ao morrer, com 94 anos, ele deixou 53 mulheres, 80 filhos e 12 mil escravos. Tão grande era o seu poder na área do comércio negreiro que "Quando assinava uma letra, esta era aceita sem hesitação em Liverpool, Nova York, Marselha e outras praças. Dele dizia-se que a palavra bastava, não sendo necessário documento escrito para firmar um compromisso", conta Costa e Silva. Seu poder diminuiu apenas pela velhice, em 1844, com então 90 anos com Reumatismo foi deixando o comércio de escravos de lado, mesmo assim teve tempo de quase ser o pioneiro da exportação do óleo de palma ou azeite-de-dendê que logo substituiu o comércio de escravos.

Felix mesmo sendo o mercador de negros mais bem-sucedido, não foi o único, existem vários Brasileiros e negros que seguiram a mesma linha de Francisco dando-se muito bem como escravagistas, como Domingos José, rei do Tráfico em Lagoas e que no dia 16 de Setembro de 2011 teve seu nome escrito no Livro dos Heróis da Pátria, o qual está depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves pela lei 12.488.

Referência

BAQUAQUA, Mahommah Gardo. An interesting narrative Biography of Mahommah G. Baquaqua, Moore, Samuel, active 1854 ,University of North Carolina at Chapel Hill Documenting the American South (Project).


FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 2ed. 4. reimpr. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

GURAN, Milton. Agudás: Os “brasileiros” do Benim. Nova Franteira, 2000.

HAAG, Carlos. Os Escravos dos escravos. Revista Pesquisa Fapesb . Agosto de 2004,edição 102. p.92 a 94

SOUZA, Marina de Melo e. África e Brasil africano. In: CAMARGO, Rosiane de; MOCELLIN, Renato.História em debate. Volume 2. Ensino Médio. São Paulo: Editora do Brasil, 2010, p. 174.

LARA, Silvia Hunold. Biografia de Mahommah G. Baquaquá. Universidade Estadual de Campinas, p. 269 a 284

NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. 2ed., revista e ampliada - São Paulo: Leya, 2011.

VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos etabus da historiografia brasileira. Revista O Tempo, vol. 4, nº 8, ago/1999.

OLIVEIRA, Felipe Braga de. Brasil Colonia: O Protagonismo negro na escravidão


Publicado por: Vanessa Fernandes

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