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Educação Física e Capoeira: Cultura Popular e Indústria Cultural no Jogo de Roda

Educação Física e Capoeira: Cultura Popular e Indústria Cultural no Jogo de Roda. Clique e entenda!

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Resumo: Historicamente, a Capoeira, originada das lutas por liberdade do escravo em nosso país, passou por uma série de modificações tanto na sua expressão corporal quanto na sua denominação, fruto de uma reorganização motivada pelas políticas de embranquecimento e dominação da população afro-descendente vigorantes a partir do período da Republica Nova. Determinou-se, a partir destas políticas, uma nova era desta arte sob a influência direta da indústria cultural, que dicotomizou a Capoeira em Capoeira Regional e Capoeira Angola a partir da década de 1930. Disso resultou um rápido processo de esportivização da Capoeira Regional em detrimento de boa parte de suas tradições. Na pós-modernidade, sob a égide da globalização, o fetiche da mercadoria e a reificação do homem agem de modo invisível pelos mais variados veículos de comunicação para expandir a capoeiragem a todos os povos do planeta, sugerindo a possibilidade de que não só a Capoeira Regional, mas também a Angola se tornem adulteradas. Marx mostra que a produção do homem não pode se impor a ele e que só é possível superar a alienação pelo entendimento de que o homem, nas suas relações sociais, se transforma. No rumo deste entendimento a arte/cultura da Capoeira Angola se revela uma excelente pedagoga. Em face aos auspícios revogadores da pós-modernidade, ela se oferece à escola através das aulas de Educação Física como possibilidade de resistência, luta e transformação.

Palavras-chave: Capoeira Angola. Indústria cultural. Educação Física.

Resumen: Históricamente, la Capoeira, se originó en las luchas por la libertad del esclavo en nuestro país. Una serie de cambios tanto en su expresión corporal como en su nombre fue el resultado de una reorganización impulsada por las políticas de dominación y blanqueamiento de la población afro-descendiente vigorantes desde el momento de la Nueva República. Se determino, sobre la base de estas políticas, una nueva era de arte bajo la influencia directa de la industria cultural, causado la división de Capoeira en la Capoeira Angola y Capoeira Regional desde la década de 1930. Por otra parte dio lugar a un rápido proceso de esportivização de Capoeira Regional en detrimento de gran parte de sus tradiciones. En la post-modernidad, bajo la égida de la globalización, el fetiche de la mercancía y la cosificación del hombre están actuando de manera invisible por los más variados medios de comunicación para ampliar la capoeiragem a todos los pueblos del planeta, lo que sugiere la posibilidad de que no sólo la Capoeira Regional, pero también a Angola a fin de convertirse en adulterados. Marx mostró que la producción del hombre no puede imponer sobre él y que sólo puede ser superada la alienacion por la venta entendimiento de que el hombre en sus relaciones sociales, se transforma. En el curso de la comprensión del arte y la cultura la Capoeira Angola es un excelente pedagogo. En la cara del patrocinio de la post-modernidad, que da la escuela a través de la escuela de Educación Física con la posibilidad de resistencia, lucha y transformación.

Palabras clave: Capoeira Angola. Industria cultural. Educación Física.

Considerações introdutórias

A Educação Física brasileira precisa (...) resgatar a capoeira enquanto manifestação cultural, ou seja, trabalhar com a sua historicidade, não desencarná-la do movimento cultural e político que a gerou (Coletivo de Autores, 1992, p.76).

Neste trabalho, apresento minha experiência pedagógica desenvolvida no Colégio Estadual Doutor Gastão Vidigal, no município paranaense de Maringá, Núcleo Regional de Ensino de Maringá, onde realizei a fase de implementação do material didático do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED), turma de 2007, junto aos alunos das primeiras séries do ensino médio, turmas J, K, L e M, do período vespertino, durante as aulas regulares de Educação Física (EF). A implementação do material didático do PDE foi realizada no primeiro trimestre de 2008.

A partir de março de 2007, procurei potencializar o ideal político do PDE - no que se refere à forma inusitada de capacitação de professores da rede pública estadual de ensino do Paraná - empreendendo uma pesquisa que abarcou temas complexos e densos como indústria cultural, pós-modernidade, identidade cultural, globalização, esportivização e EF. Este estudo procurou desvelar o percurso histórico da capoeiragem à luz dos pressupostos da teoria crítica, a partir do conceito de indústria cultural. Procurei, ainda, identificar as diferentes formas pedagógicas inseridas no universo capoeirístico a partir dos diálogos mantidos com a Educação Física e, especialmente, com os elementos estruturadores da realidade sócio-histórica que a determinam. O itinerário destas reflexões ensejou um material didático que procurou fornecer o aporte necessário à afirmação dos fundamentos pedagógicos africanos presentes na Capoeira Angola como justificativa à sua inserção nas aulas de EF na condição de componente alternativo à atual prática hegemônica esportiva. Este material didático resultou numa monografia intitulada: “Educação Física e Capoeira: Cultura Popular e Indústria Cultural no Jogo de Roda”.

A oportunidade de estudar estas questões significou devolver ao aluno, à escola, à EF e à sociedade um fragmento da expectativa e confiança depositadas no mundo acadêmico por tantos brasileiros historicamente vitimados pela carência absoluta de experiências desta envergadura.

1. Descaminhos das identidades culturais na pós-modernidade

O Brasil, pelas suas condições particulares desde meados do século 20, é um dos países onde essa famosa indústria cultural deitou raízes mais fundas e por isso mesmo é um daqueles onde ela, já solidamente instalada e agindo em lugar da cultura nacional, vem produzindo estragos de monta. (Milton Santos)

O mundo contemporâneo, marcado vigorosamente pela mundialização da indústria cultural e suas relações com a crença numa nova ordem social proporcionada, sobretudo, pelo empuxo das tecnologias da comunicação, assinala uma inusitada manipulação das consciências e abala todas as convicções consolidadas na modernidade. É a partir da derrocada da lógica, do desencanto que se instala sobre a identidade e a cultura (acompanhados da crise de conceitos fundamentais ao pensamento moderno tais como “verdade”, “razão” e “legitimidade”) que se inicia a partir da década de 1960, a pós-modernidade, entendida por Frederic Jameson como a lógica cultural do capitalismo tardio (JAMESON, 1994). Em que pese as polêmicas em torno do ato de se conceituar a pós-modernidade, concordo com Loureiro e Della Fonte (2003, p. 15-16), segundo os quais:

A caracterização clássica do conceito de pós-moderno é a de Loyotard (2000). Segundo esse autor, o advento do pós-moderno se relaciona às mudanças amplas ocorridas a partir do final dos anos 50: a saber, muda o estatuto ao mesmo tempo em que as sociedades entram na “idade pós-industrial” e a cultura na idade “pós-moderna”. O termo pós-moderno designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos das ciências, da literatura e das artes a partir do século XIX. (...) Lyotard considera pós-moderna a incredulidade em relação aos metarrelatos (...), do apelo da ciência a idéias de progresso e emancipação. 

De acordo com Jameson (1985, p. 26), "a emergência da pós-modernidade está estritamente relacionada à emergência desta nova fase do capitalismo avançado, multinacional e de consumo”. O perfil pós-moderno do modo de produção capitalista caracteriza um período no qual as mudanças tecnológicas são tão amplas e rápidas que transgridem a capacidade humana de pensá-las, senti-las e ponderar sobre elas. É a validação da provisoriedade, em que as certezas tornam-se relativas e os meios de comunicação já não apenas informam, produzem hábitos e valores voltados ao consumo dos produtos de uma indústria cultural que se vê cada vez mais mundializada.

Na pós-modernidade, os interesses hegemônicos do capital agudizam seu cerco às questões culturais, mergulhando o ser humano numa realidade globalizada que proclama a si mesma como redentora da humanidade pelo espraiamento mundial dos produtos da indústria cultural camuflados sob o pseudônimo de “conhecimento”. Como consideram Lastres; Cassiolato; Maldonado; Vargas (1998, p. 01),

A emergência de um novo paradigma tecnológico e a globalização financeira são os traços mais marcantes da economia mundial nos últimos 15 anos. Estreitou-se ainda mais a integração da economia mundial, enquanto a revolução tecnológica se difundia rapidamente, porém de forma desigual, mesmo entre as principais economias avançadas. (...) No contexto internacional da década de 1990, uma das características principais das intensas mudanças observadas nos processos produtivos relaciona-se à crescente intensidade de investimentos em conhecimento.

Contudo, para além do véu das aparências, a globalização não abdica da exploração econômica, da injustiça e da desigualdade. Referindo-se aos conflitos oriundos das desigualdades no mundo globalizado, Duarte (2007, p. 150) cita os seguintes números:

Nos últimos 15 anos os rendimentos do capital cresceram 59% enquanto aqueles oriundos do trabalho, praticamente não cresceram, i.e., tiveram um acréscimo de apenas 2%. Nas últimas duas décadas a produção mundial aumentou de 4 para 23 trilhões de dólares norte-americanos, enquanto o número de pobres nesse período aumentou em 20%. No que concerne à participação dos mais pobres na renda mundial, a parcela diminuiu de 4% em 1960 para 1% em 1990. A concentração chegou a um ponto em que 358 bilionários possuem hoje mais da metade de tudo que a humanidade percebe.   

  As inovações tecnológicas incessantes aplicadas ao mundo das comunicações tendem à supressão das fronteiras nacionais. As trocas de bens culturais desestabilizam antigos e consagrados sentimentos de identidade e pertencimento. De acordo com Hall (2003), como decorrência dos processos mundiais de globalização, que esfacelam tempo e espaço, a identidade encontra-se descentrada, deslocada e fragmentada, com sensível abalo em seu quadro de referências.

O sujeito pós-moderno, (...) não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (HALL, 2003, p.12-13)

No mundo globalizado as identidades locais são “reinventadas” a partir de uma amnésia social que prescreve um modelo cultural para que todos – ricos, pobres, judeus, muçulmanos, cristãos, brancos, negros, índios, asiáticos e mestiços – se identifiquem. Apaziguam-se as desigualdades como resultado de um processo de aculturação. O que questiono aqui não é o declínio das identidades culturais calcadas no modelo do Estado burguês, mas a reformulação das identidades culturais populares, obediente unilateralmente à volubilidade do mercado de bens culturais industrializados.

2. Mazelas da urbanização da vida social brasileira

A cultura popular brasileira, que na modernidade havia constituído múltiplas convizinhanças culturais, com similitudes como, por exemplo, a existência da sanfona e da viola introduzidas pelos portugueses em três séculos de colonização cultural, adquire um caráter transitório e fugaz diante dos atos pós-modernos. O processo de urbanização radical da vida social brasileira, isto é, a concentração cada vez mais densa de população em aglomerações de caráter urbano (FERREIRA, 2004), ensejado pela industrialização nacional de meados do século XX, expulsou vultosas quantias de seres humanos de suas casas, culturas e tradições, rumo às cidades. Vale recorrer, neste ponto, à citação de Santos (2005, p. 40):

A população brasileira, que era de 30 milhões em 1920, é de 83 milhões em 1965. O incremento demográfico teve como conseqüência não somente o aumento dos efetivos em cada região, mas também a redistribuição da população. Essa redistribuição manifestou-se por um novo equilíbrio demográfico regional e um abandono do campo, com o aumento do número das cidades e da sua população.

Mais adiante o mesmo autor considera que:

(...) tivemos, primeiro, uma urbanização aglomerada, com o aumento do número – e da respectiva população – dos núcleos com mais de 20 mil habitantes, em seguida uma urbanização concentrada, com a multiplicação de cidades de tamanho intermédio, para alcançarmos, depois, o estágio de metropolização, com o aumento considerável do número de cidades milionárias.  (SANTOS, 2005, p. 202)

Nas palavras de Eric Hobsbawn, “A mudança social mais impressionante e de mais longo alcance da metade deste século e, que nos isola para sempre do mundo do passado, é a morte do campesinato.” (HOBSBAWN, 1995, p. 284). Obviamente, Hobsbawm ao falar em morte do campesinato está se referindo ao gigantesco êxodo rural que atingiu o mundo todo e diminuiu drasticamente a população do campo que na primeira metade do século XX era a maioria absoluta e na segunda metade do mesmo século tornou-se a minoria em todos os países. Para Oliveira (1977), se a transformação do Brasil em um país urbanizado, de base industrial, ocorreu a partir da segunda metade do século XX, o processo de urbanização brasileira teve início na necessidade econômica de superação do modelo produtivo baseado no trabalho escravo. Segundo este autor,

O Estado brasileiro, não por inspiração doutrinária nem ideológica, é forçado pelas próprias necessidades de reprodução ampliada do capital a penetrar em espaços produtivos que antes não estavam sob seu controle nem sob seu comando. (OLIVEIRA, 1977 p. 47)

Gilberto Freyre considerava a necessidade da valorização do homem rural como o "resgate de um desvio histórico” (FREIRE, 1978). No artigo intitulado “O homem e as paisagens rurais” faz a seguinte consideração:

O processo de desvalorização do homem do campo no nosso país é conseqüência do progresso da cultura do café no século XIX. Realmente é curioso notar como o homem rural – refiro-me ao trabalhador – tem sido uma vítima do progresso – no norte, da indústria do açúcar, no sul, da cultura do café – do ponto de vista de sua saúde, de sua alimentação, do seu vigor físico, de suas condições de vida material e moral. Basta observar-se o seguinte: que iniciou-se no Brasil, desde os princípios do século XIX, uma espécie de revolução da paisagem ou da topografia; que não podia deixar de refletir sobre a saúde da gente rural: a invasão dos altos pelas plantações de café – e até certo ponto de cana: a maior devastação das matas; a preservação das águas. (...) A devastação das matas (...) correspondeu ao mesmo fim exclusivamente econômico: ao furor da monocultura. (FREYRE, 1978).

Ao encontro desta reflexão, Hamilton Carneiro argumenta:

(...) as manifestações culturais do nosso povo como as congadas e as duplas caipiras (...) são verdadeiros documentos sobre o campo. O processo migratório foi muito brutal. Máquinas poderosíssimas estão acabando com o nosso cerrado para plantar soja. Há um choque violentíssimo, mas também há certa convivência. (...) As duplas caipiras, na linha de Tonico & Tinoco, André & Andrade, registram esse passado, esse choque cultural. Assim como Jorge Amado registrou a Bahia em seus romances, um Zé Fortuna ou um Goiá registraram a história do interior brasileiro. Não podemos ignorar essa cultura. (CARNEIRO, 2004, on-line).

Sob a égide do capital, um contínuo e assustador surgimento de conceitos inéditos destitui os valores tradicionais em nome de um questionável relativismo onde as éticas, os fatos e a própria realidade parecem estar num verdadeiro corredor da morte. O capitalismo atual proclama a si mesmo como redentor da humanidade pelo espraiamento das tecnologias. Contudo, para além do véu das aparências, não abdica da desigualdade social. Ao escrever “A Era dos Extremos”, Eric Hobsbawm nos descreve os excessos da conduta humana que se colocaram à mostra no século XX.  À frente das diversas faces daquilo que o autor chamou de "extremos", está o absurdo abismo mundial entre riqueza e miséria, avanços tecnológicos e barbárie. O século que produziu uma opulência tecnológica, econômica e material sem precedentes também a confinou em pequenos espaços do globo, e mesmo ali em poucas mãos. Nunca houve tantos com tão pouco e tão poucos com tanto. Se houve relativa facilidade em batizar o século XVI como o “Século do Renascimento”, o século XVIII como o "Século das Luzes" e o século XIX como o "Século da Razão", o mesmo não será verdadeiro com relação ao século XX. Afinal, foi o século do automóvel, do avião, do telefone, da televisão, da viagem à lua, da engenharia genética, da internet. Mas foi também o século de duas guerras mundiais, das fórmulas de destruição em massa, do holocausto, da bomba atômica e da completa intolerância com o diferente. (HOBSBAWN, 1995)

3. Identidade(s) alterada(s): brasilidade ou brasilidades?

A partir do século XVIII, época em que, segundo Burke (1992, p. 12), houve uma generalização no conceito de cultura, ocorre a consolidação dos estados nacionais. Esse é, também, o momento da Revolução Industrial e de uma urbanização radical da vida social européia que, depois, se estendeu para todo o planeta. Estes episódios promovem uma intersecção entre si para, depois, redesenhar as formas pelas quais os homens se organizam em sociedade. Neste processo, os grupos que, até então, se viam como diferentes vão adquirir um sentimento de identidade, uma noção de pertencimento a um mesmo estado, a uma mesma nação. De acordo com Hall (1998, p. 51),

As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.

A construção das identidades nacionais implicou, ao mesmo tempo, no fortalecimento e no combate às tradições populares. A identidade nacional resgatou a cultura tradicional popular (em termos políticos de unificação nacional) e a combateu (para eliminar o efeito negativo da existência de pequenos grupos identidários). A constituição de cada estado-nação se contrapôs às unidades culturais existentes no sentido de homogeneizá-las e dissolve-las no interior da nova realidade social. Paradoxalmente, a cultura popular se prestou, num mesmo mecanismo, à unificação dos estados e à resistência a esta mesma unificação. Exemplo disso é o caso das ditas “nações sem estado”, como o Pais Basco, na Espanha, e a Irlanda do Norte, no Reino Unido, verdadeiros entraves à consolidação daqueles estados.

Contrariando o que se passou a chamar de homogeneização das identidades - em favor do apagamento das diferenças locais - tornou-se importante repensar o Brasil para além dos discursos que apregoam a existência de uma identidade nacional (Ortiz, 1997).  O brasileiro é, em geral, considerado um povo nacionalista, orgulhoso de ser brasileiro. Expressões como “jeitinho brasileiro” documentam esta afirmação. O Brasil é o nosso país, mas ele realmente nos pertence? Que traços marcam esta “identidade cultural brasileira”? É sabido que somos uma mistura de etnias. Mas é só isso? O que significa hoje ser brasileiro? Para Darcy Ribeiro, o que é marcante em nosso povo é sua ninguendade: somos tantas culturas, tantos brasis, tantas misturas, que se pode dizer que somos ninguém. O autor fala de cinco Brasis: 1) o Brasil da cultura sertaneja do nordeste e do centro, baseada na produção do couro e do gado; 2) o Brasil da cultura crioula do litoral, baseada nos engenhos de açúcar; 3) o Brasil da cultura cabocla da Amazônia, baseada nos seringais e na pesca dos rios; 4) o Brasil caipira do sudeste e centro, baseado na economia do café e da subsistência e nascida dos bandeirantes; 5) o Brasil da cultura gaúcha das estâncias de gado e da cultura agrícola dos imigrantes no sul do país. (RIBEIRO, 2005) Emprestando da música de Maurício Tapajós e Aldir Blanc o refrão “o Brasil não conhece o Brasil”, poder-se-ia, talvez, dizer: o Brasil não conhece “os Brasis”. Carlos Drumond de Andrade chegou a dizer que “nenhum Brasil existe”. Penso logo em pelo menos dois deles, separados por um abismo econômico e cultural: um miserável e outro rico. Há um Brasil formado por um encontro formidável de culturas, onde existem museus com Van Goghs e um outro que reflete ainda hoje as conseqüências maléficas de seu processo histórico de descoberta e colonização.

O pêndulo de todas as indagações acerca da definição das identidades vê-se finalmente firmado sobre um ponto situado para além da brasilidade, nas brasilidades. Desde o final do século XIX os esforços de industrialização/urbanização da vida social brasileira reuniu na urbe, à força do êxodo rural, uma disparidade ímpar de identidades culturais oriundas dos mais longínquos recônditos do país. São muitos “tchês”, “uais” e “ôchentes” que encontram na metrópole - de forma artificiosa, insegura e hesitante - um lugar que não é seu, com uma gente que não é sua, por motivos que não são seus. De imediato, não há unidade possível entre as culturas dessas gentes. Aproveitando-se do fato, a indústria cultural oferece aos medos e esperanças de toda essa coletividade disforme um construto cultural condensado à força de uma mercadização que homogeneíza as inomogeneidades e propõem a liberdade dentro da prisão.  

3. Consumismo: o fetiche da indústria cultural na globalização

Na esteira da complexidade cada vez maior do capitalismo, a identidade cultural já não se concretiza a partir de relações comunitárias, de pertencimento. No mundo urbano do trabalho, a falta de tempo para diálogo entre os indivíduos - como significado residual da indústria - distancia as pessoas e o contato se transforma num diálogo de surdos. Os seres humanos perdem, principalmente nos grandes centros urbanos, o sentido do outro; eles não mais se socializam, ou se socializam de um modo minimizado e artificial. Não há lugar mais para os sentimentos de empatia e alteridade; os homens se tornaram indiferentes uns aos outros na marcha rumo a ao consumo. Para Loureiro e Della Fonte (2003, p. 66-67),

(...) a causa da dissolução das individualidades, nas últimas décadas, tem a ver com o alcance hegemônico da economia de mercado sobre as pessoas, num universo onde as crianças aparecem como usuários. (...) O menino diz que possuir um Pentium é seu sonho. Meses mais tarde, a mãe do garoto, que também é consumida pelo consumo e só pensa em ganhar mais dinheiro para possuir “coisas”, realizada, diz: “Compramos o Pentium. (...) Sei que é uma máquina, mas não deixa de ser uma companhia. Ele tem momentos de alegria com seu micro mais do que comigo, que tenho tanta dificuldade de descobrir o meu instinto materno.” (...) A famosa frase “Penso, logo existo!”, de Descartes, poderia ser modificada para “Consumo, logo existo!”.

 Com base num cotidiano fundamentado na novidade e no fetiche dos produtos da indústria cultural, as falsas promessas de prazeres absolutos se apresentam ao público no palco privilegiado do encontro virtual, que adquire status norteador da vida urbana, onde já perdura, por antecipação, um paradigma comportamental baseado no consumismo. Um dos meios com que a indústria cultural exerce seu controle sobre os consumidores, explicam Adorno e Horkheimer, é a diversão:

Divertir-se significa estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do processo social em seu todo, se idiotiza e abandona desde o início a pretensão inescapável de toda obra, mesmo da mais insignificante, de refletir em sua limitação o todo. Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é a sua própria base. É na verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última idéia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir. (1985,p.135)

A sociedade urbanizada, alimentada por atraentes procedimentos de comunicação visual e marketing acentua o consumo e a competitividade. Há uma crescente preocupação de sempre poder consumir o produto reconhecido como símbolo de status: aquilo que o outro possui causa inveja. O pensamento está voltado para aquilo que se acredita ser necessário para a manutenção desse status. Torna-se imperioso comprar um aparelho de televisão maior ou mais sofisticado. Ficar sentado durante horas na frente televisor ou comprar um telefone celular são símbolos de novas necessidades. Referindo-se a essas necessidades, Herbert Marcuse faz o seguinte comentário:

São necessidades negativas, que satisfazem de fato uma necessidade que se tornou real, mas ao satisfazê-la retardam a emancipação do homem do trabalho alienado, de todo o sistema de valores do capitalismo, e trabalham contra a emancipação” (MARCUSE, 1999, p.113).

Dentro da perspectiva identidária urbana revoga-se o contato real entre as pessoas e desautoriza-se a memória das antigas experiências rurais de encontro e pertencimento. E a identidade, desmemoriada, se perde de si mesma. De acordo com Hobsbawn (1995, p. 13),

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje cresceram num presente contínuo sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.

As novas feições urbanas da vida social inauguraram um triste espetáculo de transgressão/renomeação do belo e da capacidade humana de senti-lo e de pensar sobre ele. Na crônica “Eu sei, mas não devia”, a escritora Marina Colasanti descreve o ser humano treinado para se defender da própria existência diante das armadilhas de um mundo baseado na revogação da condição humana. Eis um trecho do texto:

Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

Preenchido pelo simulacro de relação propiciado pela televisão, o homem contemporâneo, ilhado de si mesmo e do outro pelo rareamento do tempo necessário à aproximação e ao contato, afunda no prazer falacioso da saturação informativa, do entretenimento e do consumo frenético dos produtos descartáveis e efêmeros da indústria cultural mundializada. De acordo com Duarte (2007, p. 147-148), “Destaca-se a respeito do surgimento desta discussão, o termo ‘indústria cultural global’ empregado pelo sociólogo inglês Scott Lash”. Mais adiante, continua o autor considerando que “... a globalização das ações econômicas é acompanhada de vagas de transformação cultural – de um processo que se torna conhecido como ‘globalização cultural’” (p. 152).

Para o consumidor da indústria cultural globalizada qualquer bugiganga basta. O que reluz num shopping-center satisfaz perfeitamente suas “necessidades”. Em “A  Era do Vazio”, Gilles Lipovetsky focaliza o enfraquecimento dos costumes sociais no indivíduo contemporâneo diante do consumo massificado e de um modo de individualização narcísica, inédito na história da humanidade (LIPOVETSKY, 1993).  Alain Finkielkraut, em “A Derrota do Pensamento”, fala de um homem cada vez menos sábio, no sentido clássico do termo, que navega à deriva, sem uma bússola e sem vínculos. Este homem, numa profunda crise de afirmação cultural, está regredido às cavernas (para além de Platão), sitiado pela barbárie que promove o infantilismo e a negação da identidade cultural (FINKIELKRAUT, 1988). "E a vida com o pensamento cede suavemente o lugar ao face-a-face terrível e irrisório do fantástico e do zumbi" (FINKIELKRAUT, 1988, p. 159). Um turbilhão de seres humanos miserabilizados por uma civilidade opressora devoram avidamente sua própria miséria nas formas culturais miseráveis que consomem, numa espécie de reedição pós-moderna da antropofagia modernista instaurada na primeira metade do século XX. Para SILVEIRA (2001, p. 92),

O novo discurso é poder e poder não se partilha. (...) Concentram-se riquezas, status e poder em centros de controle, como estratégia de ação. O homem do povo só sofre os reflexos da nova ordem global, ele consome o pacote pronto, tanto as novas tecnologias, como as influências das novas categorias epistemológicas. (...) Uma parte considerável do povo, no Brasil e nos países marcados pelo estigma da pobreza, são os excluídos. (...) legiões de miseráveis povoam as favelas dos grandes centros, crianças famintas e maltrapilhas perambulam pelas ruas e praças, num espetáculo de horror. O desemprego em escala, filho bastardo da nova ordem, se alastra como uma praga incontrolável. Como conseqüência, a violência toma conta das cidades, do campo e, nos grandes centros urbanos, a vida humana tem um valor meramente simbólico e, ao final de cada semana, os imls se enchem de cadáveres, como resultado da falência do estado na área da segurança pública. Enquanto isso, o poder público alardeia a criação de programas para a erradicação da miséria absoluta que nunca chegam.

4. A cultura enquanto força instauradora através da Capoeira Angola

No Brasil, o processo de homogeneização cultural inaugurado pela urbanização/industrialização da vida social - e agudizado pela globalização - vem moldando comportamentos, criando novas formas de compreensão do mundo, fortemente influenciadas por uma indústria cultural mundializada. Nesse contexto, a Capoeira Angola, signo de símbolos e expressões de uma educação não-formal, revela uma força cultural instauradora que se recusa a ser subjugada. O ritmo subversivamente lento ditado pela lógica do angoleiro e o desenrolar quase fastidioso do jogo, ladeado por cantigas perseverantemente repetitivas, comparece em desacato à aceleração frenética e alucinante do mundo pós-moderno.

Por outro lado, o estudo das emaranhadas relações mantidas entre o trajeto histórico-cultural da sociedade brasileira e a (de)formação da Capoeira Regional, propicia a necessária critica sobre os valores (de)formadores da capoeiragem de rendimento, de espetáculo, de competição, de “saúde” e alerta para os perigos de sua inserção na escola. Dentro desta perspectiva, Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira trazem a seguinte reflexão:

Este tipo de mentalidade permanece atuante em acontecimentos que aparentemente não possuem qualquer correlação, tais como a luta pela memorização de fórmulas e datas exigidas nas avaliações mensais e as disputas esportivas que há muito abandonaram o princípio de que o que importa é a participação e não a vitória a qualquer custo. Ambas as situações se rendem ante a inexorável conclusão de que só dois tipos de caráter são devidamente aceitos: os vencedores e os perdedores. (...) Deve-se oferecer oposição (...) aos comportamentos dos agentes educacionais que se acostumam com a associação do pensamento superficial e a valorização daqueles que sempre aceitam as regras do jogo. (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2000, 113-114)

O conceito de cultura corporal anunciado pelo Coletivo de Autores (1992), com base na história das atividades corporais, busca por uma reflexão pedagógica a partir da compreensão do ser humano em suas relações materiais. Dentro desta perspectiva – e de modo conseqüente - as atividades da cultura corporal de movimento e, em particular a capoeiragem, desenvolveram-se como produto das relações travadas pelos homens em sociedade. Uma segunda conclusão decorre desta primeira: algumas “bandeiras” cultivadas e defendidas pelos antigos mestres angoleiros, como a oralidade, o ritual, o improviso, a “mandinga”, a resistência cultural, são substituídas por outras mais sintonizadas com o capital, tais como: “mercadoria étnica”, “folia”, “competição”, “rendimento”, “malhação” e “espetacularização”, dentre outras. (VASSALLO, 2003).

Na cultura afro-descendente, quem ensina é o velho, porque se percebe nele o valor da sabedoria acumulada ao longo dos anos. “Mestre” é a denominação que consagra aquele que repassa às novas gerações os saberes peculiares à sua identidade cultural. Quem denomina o mestre como tal não é a academia, mas os olhos do povo que o reconhecem merecedor de tal distinção. Desse modo, de acordo com as diferentes especificidades culturais da afro-brasilidade, existem mestres de Jongo, de Caxambu, de Coco, de Samba-de-roda, de Tambor-de-criola, de Batuque, de Capoeira. 

Quando os últimos raios de sol deixavam a Praça da Matriz em São Filipe, cidade fumajeira do Recôncavo Baiano, as crianças sumiam porta adentro à espera do café com pão que era engolido às pressas, porque estava quase na hora de Eulina começar a contar suas histórias. Eram histórias de reis, rainhas, casas mal-assombradas e bichos falantes. Eulina era uma mulher negra retinta, braços fortes e uma voz forte e doce que prendia a atenção da gente, o tempo que ela quisesse. (...) Eulina tinha braços tão fortes que agüentava torrar e pilar café todos os dias da semana. (...) Um jeito agradável de falar, um sorriso aberto, mostrando uma alegria retirada do fundo da sua alma negra, encantavam principalmente as crianças. Quando chegava a noitinha, depois de suas múltiplas atividades, chegava a hora do sagrado compromisso de contar histórias para as crianças da vizinhança. Naquela hora ninguém faltava, ninguém chegava atrasado, ninguém dava um pio. Nunca esqueci Eulina e suas histórias, porque eram interessantes e muitas vezes parecidas com a vida que a gente vivia. (MACHADO, 2007, p. 01)

No rastro da cultura popular afro-descendente, a Capoeira Angola se estende qual um tapete de memórias que atravessando o Atlântico se faz o sal do alimento que manteve o africano - silenciado pela escravidão - culturalmente vivo em nosso país. A pedagogia afro-brasileira não está limitada à palavra escrita ou à domesticação de corpos inertes e mentes inflacionadas de informações pela monotonia autoritária da sala de aula. Constrói o saber corporalmente, afetuosamente, trecho a trecho, pois é no percurso que tudo acontece. Nas palavras de Abib (2006), “Os velhos capoeiras ensinam pegando na mão”. Na perspectiva há também a sagração, que representa o mistério, o segredo e o silêncio que ocupa momentos preciosos na estética afro-descendente. Diferentemente do sábio da tradição ocidental, que esqueceu os pequenos prazeres do abandono no processo de abstração, o mestre afro-descendente nunca esquece as pequenas singularidades que emanam de energias da natureza chamadas de "orixás" (sagrados).

No universo tradicional da Capoeira Angola, tudo se movimenta e se aquieta; se agita e se acalma. Não na palavra, no gesto. Enquanto a cultura ocidental encontra na palavra pronunciada sua forma de expansão, a cultura angoleira se encontra e se reconhece na ginga de sua corporalidade. O ritmo dos tambores ponteia o movimento e os cânticos determinam a intensidade dos gestos. Desta luta-dança emergem vivências e simbologias revestidas de emoção e afeto, num reconhecimento maior da própria identidade na perspectiva do contato com o outro. No início do aprendizado o corpo não responde, mas aos poucos vão emergindo registros emocionais de experiências de vida que se instauram no corpo. Sobre a forma angoleira de ensinar de Mestre Pastinha, Waldeloir Rego, traz a seguinte citação:

 O ensino da capoeira é feito como nas demais academias, isto é, por via oral, à exceção da de Mestre Bimba. Mestre Pastinha, como todo capoeira, vai transmitindo a seus discípulos aquilo que sabe e aquilo que quer transmitir. A sua academia é um reflexo do que eu já disse anteriormente do Mestre. (REGO, 1969, p.283)

 

5. Capoeira e EF

O termo Capoeira Angola estabeleceu, a partir da década de 1930, um divisor de águas entre aquela Capoeira que já era praticada e a Capoeira Regional Baiana, criada por Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba. “Angola” foi o termo utilizado para designar a região da África de onde vieram os negros que, mais tarde, criaram a Capoeira no Brasil com base no N’golo, ou “jogo da zebra”. De acordo com MACEDO (2006, p. 427),

Com a descriminalização implantada por Getúlio Vargas, em 1937, e a abertura do Centro Esportivo de Capoeira Angola de mestre Pastinha, em 1941, dentre outros fatores, torna-se evidente a presença da Capoeira no cenário baiano e nacional, principalmente da Capoeira enquanto esporte, como técnica militar e como manifestação cultural, quando prevalece a prática do jogo e do ritual.

A Capoeira Regional assume as particularidades de uma EF higienista e militarista, cuja ênfase estava na formação de homens e mulheres fortes, sadios e disciplinados, disseminando padrões de conduta capazes de erigir uma sociedade obediente, livre das doenças infecciosas e dos presumidos “vícios morais da malandragem da época”. (PIMENTEL, 1989). A EF já havia ingressado nos currículos escolares desde o século XIX, justificando-se, cientificamente, como promotora de saúde pela prática preventiva de  sistemas e métodos ginásticos. De higienista, a EF incorpora a partir da década de 1930, um sentido notadamente militar. Conforme relata Bracht (1999, p. 17),

O século XIX vai ser o século da sistematização dos métodos ginásticos cujo discurso científico fundamentador era predominantemente derivado das ciências biológicas, sendo os intelectuais que construíram esse discurso do campo médico e também pedagógico, sendo neste último caso a fundamentação também fortemente marcada por pressupostos biológicos. Outra instituição importante e que foi cadinho da elaboração da EF é a militar. Assim, as estruturas do pensamento, com seus pressupostos científicos e filosóficos, estavam ancoradas tanto na instituição médica quanto na militar. Neste sentido, (...) no caso brasileiro, a instituição militar constituiu, nas décadas de 30 e 40 deste século, um projeto de Educação Física para o país, articulado como um projeto para a educação brasileira como um todo.  

Higiene, raça, moral e militarismo pontuam, então, as propostas pedagógicas que contemplam a EF a partir de uma argumentação forjada nas

(...) noções de mérito e responsabilidade individual, elementos da ideologia igualitária. Após a Revolução Francesa, se o seu lugar permanece central nesse sistema ideológico, a função que ela exerce se altera radicalmente: a noção de aptidão, a partir daí, serve progressivamente de suporte para justificar a manutenção das desigualdades sociais e escolares que as traduzem e perpetuam. Como a nova sociedade e as instituições escolares são colocadas como igualitárias, a causa das desigualdades só pode ser atribuída a um dado “natural”. (BISSERET, 1978, p. 31)

A EF do período entre a Revolução de 1930 e o Estado Novo procurou por uma formação de jovens fisicamente capacitados, tendo como pano de fundo a eliminação dos fracos e a premiação dos fortes no sentido da depuração da raça. É emblemática a afirmativa de Mazzoni sobre esta questão: “a força de uma nação é o complexo da força física, intelectual e moral de cada um de seus elementos. É a resultante das forças resultantes que a compõem”. (MAZZONI, 1945, p. 7). Uma das propostas do governo federal consistiu na idéia de que a EF deveria ajustar-se à doutrina do Estado Novo.

O Brasil precisa de homens inteligentes e disciplinados: – deve cuidar, portanto, de tornar sadia e forte sua mocidade. Em todos os países do mundo civilizado, o esporte tem merecido dos governos a máxima atenção. (MAZZONI, 1945, p. 32)

A disciplina exacerbada, inspirada no militarismo, resultaria em obediência inconteste. Para Vítor Marinho de Oliveira,

A introdução do chamado Método Francês é, também, um fato importante. Originário, ainda, de Joinville-le-Pont, foi trazido por militares franceses que vieram servir na Missão Militar Francesa. Adotado pelas Forças Armadas, a sua obrigatoriedade foi estendida à esfera escolar (1931), “enquanto não for criado o método nacional de Educação Física”. O Regulamento de Educação Física da Escola Militar de Joinville-le-Pont foi a bíblia da Educação Física brasileira por mais de duas décadas. As limitações conceituais do citado Regulamento ficam expressas quando, definindo Educação Física, rezava: “A Educação Física compreende o conjunto dos exercícios cuja prática racional e metódica é suscetível de fazer o homem atingir o mais alto grau de aperfeiçoamento físico, compatível com sua natureza.” (OLIVEIRA, 1977, p. 57)

A “naturalização” de uma sociedade que aspira por ordem e obediência encontrou na EF do final do séc. XIX e início do séc. XX a disciplina necessária ao seu projeto (SOARES, 2001, p. 05)

 

6. Militarização da capoeiragem no Estado Novo

Quando da abolição da escravidão em 13 de maio de 1888, os negros foram expulsos das casas onde viviam nas fazendas e vieram para as cidades. Em seu lugar no trabalho do campo foi colocado o imigrante italiano. Nas cidades, os ex-escravos tiveram de morar em morros, na periferia, construindo barracos com restos de construção, originando as favelas. Ninguém dava emprego ao negro ou ao mestiço (mulato), pois isso significaria deixar de dar esse emprego ao branco imigrante. Libertos no papel, os negros e mulatos não podiam nem sequer vender a única coisa que possuíam: sua força de trabalho. Tiveram de roubar para não morrer de fome. A Capoeira foi largamente utilizada neste período. Formaram-se temidos grupos de capoeiristas conhecidos como “Maltas”. E a Capoeira foi proibida por lei.

Getulio Vargas assume a presidência após comandar a Revolução de 1930 que derrubou o presidente Washington Luis. Seus quinze anos de governo seguintes caracterizaram-se pelo nacionalismo e pelo populismo. A exemplo do que se fazia na Europa da época, Getúlio queria uma ginástica genuinamente brasileira, um tipo ideal de homem brasileiro, uma luta brasileira. O índio não podia ser, pois tinha sido massacrado. O mestiço (maioria populacional) carregava o peso da escravidão e das “desordens” das Maltas de Capoeira. Aquela Capoeira e aquele afro-descendente não poderiam ser representantes do Brasil. Eram muito subversivos e rebeldes.  Mas era o que restava. A saída então era criar outra Capoeira, menos rebelde, menos malandra, mais embranquecida. Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, cria, então, a sua “Capoeira Regional Baiana”. Embora fosse negro, a maioria de seus alunos eram brancos, estudantes de medicina. Após apresentar seu estilo de Capoeira a Getúlio Vargas, a Capoeira é retirada da ilegalidade. Aos poucos, a Capoeira Regional abandona antigos ritos e costumes da Capoeira e incorpora o militarismo da EF da época.

Documenta o arraigamento militar na Capoeira Regional o fato de Mestre Bimba ter ministrado aulas de Capoeira, entre os anos de 1939 a 1942, no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), no Forte do Barbalho, em Salvador. Em seu curso de Capoeira Regional Baiana, Mestre Bimba incluiu uma etapa de “Especialização”, na qual eram realizados combates corpo-a-corpo, com e sem armas, e instruções de guerrilha. Segundo Raimundo Alves César Almeida, o Mestre Itapoan, o curso de Especialização se estendia por três meses, sendo dois na academia e um nas matas da Chapada do Rio Vermelho, onde acontecia o ponto alto do curso, as "emboscadas":

Era uma verdadeira guerra, verdadeiro treinamento de guerrilha. Bimba colocava quatro a cinco alunos para pegar de emboscada. (...) Durante essas emboscadas, os alunos do Mestre quebravam cercas, invadiam casas, tudo isso para defender-se de qualquer maneira (ALMEIDA,1982, p.27).

Neste cenário, a Capoeira Regional aporta como projeto histórico de uma sociedade calcada na necessidade da autoridade coercitiva como forma de se conseguir obediência, disciplina, aptidão física e saúde.

Constrói-se, nesse sentido, um projeto de homem disciplinado, obediente, submisso, profundo respeitador da hierarquia social. No Brasil, especificamente nas quatro primeiras décadas do século XX, foi marcante no sistema educacional a influência dos Métodos Ginásticos e da Instituição Militar. Ressalta-se que o auge da militarização da escola corresponde à execução do projeto de sociedade idealizado pela ditadura do Estado Novo. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 53).

O militarismo foi um processo introduzido fartamente na capoeiragem de Mestre Bimba, a partir da década de 1930, no sentido de atender as necessidades de disseminação de uma Capoeira obediente aos valores hegemônicos na época. Sobre essas bases, mais tarde, na década de 1970, a Capoeira se transforma, de jogo, dança e luta, em esporte.

7. Esportivização da Capoeira

A partir da década de 1970, se coloca à EF uma prática hegemônica esportiva, na esteira, mais uma vez, das tendências mundiais. Balizada pela lógica do capital, a competitividade, a padronização motora, a obediência às regras e a busca de rendimento acabam determinando os rumos da EF. Nesse sentido, Silva (1994, p. 33), considera que:

Essa forma esportivizada impõe novas características, gerando um novo movimento corporal e uma nova subjetividade humana. Gera, fundamentalmente, um novo homem que se movimenta porque tem novos valores éticos e estéticos que se estendem às demais atividades físicas, generalizando essas características a ponto de possibilitar a perda da identidade cultural e pessoal.

 A Capoeira é regulamentada em 1973 como desporto nacional pela Confederação Brasileira de Pugilismo (CBP), época que coincide com o início do predomínio do esporte e da esportivização da EF (ALVES e MONTAGNER, 2008). A Capoeira Regional passa a obedecer não só aos códigos do esporte, mas, de modo incisivo, da esportivização da cultura corporal de movimento na EF. Bracht (1997, p. 9 -10), assim descreve o processo de surgimento e consolidação do esporte moderno:

O esporte moderno refere-se a uma atividade corporal de movimento com caráter competitivo surgida no âmbito da cultura européia por volta do século XVIII, e que com esta, expandiu-se para o resto do mundo. (...) Resultou de um processo de (...) esportivização de elementos da cultura corporal de movimento das classes populares inglesas, como os jogos populares, cujos exemplos mais citados são os inúmeros jogos com bola. (...) Este processo inicia em meados do século XVIII e se intensifica no final do século XIX e início do século XX. O declínio das formas de jogos populares inicia em torno de 1800. Eles parecem ficar paulatinamente fora de uso, porque os processos de industrialização e urbanização levaram a novos padrões e novas condições de vida, com as quais aqueles jogos não eram mais compatíveis (...). Com isso os jogos tradicionais foram esvaziados de suas funções iniciais, que estavam ligados às festas (da colheita, religiosas, etc.) É importante observar também que os jogos populares foram muitas vezes reprimidos pelo poder público, como, aliás, também foi o caso de uma prática corporal das classes populares brasileiras, a capoeira, que sofreu uma perseguição violenta por parte das autoridades nas décadas de 1910 a 1930. (...) Vai ser nas escolas públicas que aqueles jogos (o caso clássico é o futebol) vão ser regulamentados e aos poucos assumir as características (formas) do esporte moderno.

É possível dizer que a EF se transforma a partir da década de 1970 numa prática hegemônica esportiva, onde o esporte goza de hegemonia e as demais atividades da cultura corporal de movimento – como foi o caso da Capoeira Regional - acabam sofrendo um processo de esportivização.  A EF, como local por excelência da detecção dos talentos esportivos reproduz, em última análise, o ideal competitivo de uma sociedade de vencidos desprezados e vencedores cultuados, marcada pela alienação, repressão e subserviência. 

Parece-me claro que a forma hegemônica da cultura corporal de movimento é o esporte. Isto é, o esporte é a forma da cultura corporal de movimento que é funcional para a atual hegemonia. (...) Se aceitarmos esta (hipó)tese, não é difícil analisar a história da Capoeira a partir dos esquemas propostos por Oliven (1938) e Meneses (1980). Reprimida, tolerada e domesticada – ou em vias de – via esportivização. (BRACHT, 1997, p. 65),

A criação da Capoeira Regional significou, portanto, o advento da Capoeira higienizada, militarizada e, finalmente, esportivizada. Evidencia a Capoeira ajustada aos ideais da indústria cultural sob os auspícios da pós-modernidade. Ressignificada, a Capoeira Regional solapa o potencial pedagógico presente no universo cultural da Capoeira Angola que se legitima como identidário e expressão histórica de inconformismo e resistência. Como considera Silva (1994, p. 43-44),

O esporte e as outras atividades praticadas nesses moldes levam os seus praticantes a um comportamento cada vez mais limitado em sua liberdade de agir e refletir e em sua conduta de escolha. (...) Ao se generalizar por toda a sociedade a abstração e a quantificação, surge um outro elemento fundamental para os fenômenos da cultura e para a própria vida do ser humano. Essas características do modo de produção capitalista, reproduzidas pelo esporte e por algumas práticas corporais, acabam gerando o princípio da indiferença, que vai, entre outras coisas, eliminando a capacidade de identificação com o outro, seja com seu esforço, seja com seu sofrimento. O ser humano vai tendo uma crescente dificuldade em se enxergar no outro e, por isso, a construção coletiva e o próprio repensar do cotidiano vão se tornando cada vez mais distantes.

A criação da Capoeira Regional sob signos sociais assumidos pela EF na sua ação pedagógica configura uma ação de entrega a partir das perseguições sofridas pelos antigos capoeiras até a República Nova. Segundo Rego (1969, p. 361),

Esse estado de coisas veio se arrastando e se desenvolvendo até 1929, com o advento de Mestre Bimba, que tira a capoeira dos terreiros e a põe em recinto fechado, com nome e caráter de academia, onde os ensinamentos passaram a ter um cunho didático e as exibições possibilitaram a presença de outras camadas sociais superiores. (...) A classe média e a burguesia para lá acorreram, a princípio para assistirem às exibições e depois para aprenderem e se exibirem a título de prática de educação física, daí a 9 de julho de 1937 o governo oficializar a capoeira, dando a Mestre Bimba um registro para sua academia. Um status social superior ao dos capoeiras invade as academias e os afugenta. Os que resistem, por minoria, se esforçam para se enquadrarem no modo de vida do invasor, porém sendo tragados por ele, começando assim a sua alienação e decadência como capoeira. Forçando uma compostura de rapaz-família, exibem-se somente em recintos fechados, salões burgueses, palácios governamentais e jamais onde primitivamente se exibiam, como por exemplo nas festas de largo.

A escola é ainda o espaço que temos para a formação das novas gerações. E a EF, de acordo com o COLETIVO DE AUTORES (1992, p. 50),

(...) é uma prática pedagógica que no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como: jogo, dança, ginástica, esportes, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal. (...) Mas o que ela vem sendo?

De conformidade, Soares (1992, p. 50) define a EF como:

(...) uma prática pedagógica que, no ambiente escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como: jogo, esporte, dança, ginástica, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal.

Na escola a Capoeira Regional passeia despreocupadamente com uma EF ingênua por um universo competitivo que não é nem ingênuo nem despreocupado. Para Celi Taffarel,

(...) a discussão sobre “Capoeira a serviço do social ou do capital?” deve ser situada no interior das denúncias formuladas pelas organizações de trabalhadores sobre a acentuação da tendência a destruição das forças produtivas – natureza, homem, relações de produção -, sob os auspícios do modo de produção capitalista. (TAFFAREL, 2004, p. 03)

Capturado pela indústria cultural a prática hegemônica desportiva nas aulas de EF manipula e transgride necessidades e desejos. Neste particular, comparece Valter Bracht (1997, p. 116-107), analisando a presença indissociável da mercadoria no interior da narrativa desportiva como artífices da espetacularização promovida pela mídia de comunicação de massas:

(...) a lógica interna que dirige, que orienta as ações no interior do sistema esportivo de alto rendimento, é impermeável aos argumentos educacionais (...). Além disso, a rivalidade entre as nações ainda é a tônica das competições internacionais; como compatibiliza-las com o ideal da confraternização? Aqui estamos de frente a uma questão que é central para entendermos a instituição esportiva como ela se apresenta hoje (nas últimas três décadas). Refiro-me ao processo de mercadorização do esporte, principalmente a partir do desenvolvimento e envolvimento dos meios de comunicação de massa, mais especificamente a televisão. (...) O esporte de rendimento ou espetáculo vai organizar-se a partir dos princípios econômicos vigentes na economia de mercado.

Celi Taffarel, devolvendo a discussão à Capoeira, no tocante à sua desportivização, traz o seguinte comentário:

A capoeira não é algo mágico que paira sobre nossas cabeças. Algo místico, mítico. É algo concreto, situado, em construção historicamente determinada. Os capoeiristas ao construírem a capoeiragem não o fazem segundo suas próprias cabeças, mas segundo condições objetivas determinadas ao longo da história e do que é próprio das relações de produção humana em dados momentos históricos. A capoeira é um dos fenômenos sócio-culturais da alta relevância no Brasil e constitui o processo civilizatório. Está situado dentro da divisão social internacional do trabalho e, portanto, neste momento histórico sofre também o processo de degeneração, decomposição e destruição. Isto é visível quando observamos o empresariamento da capoeira internacionalmente – no sistema de franquias. A mercadorização da capoeira, vista nos empórios e centros turísticos, a espetacularização da capoeira visita na mídia e nos fantasiosos espetáculos, na esportivização da capoeira, na construção de confederações, federações com finalidades competitivas, necessidade imperiosa do capital. (TAFFAREL, 2004, p. 17)

Em detrimento da ilusória inevitabilidade da existência massificada, é preciosa a captação da cultura popular enquanto forma social de identidade onde se (re)configura a possibilidade do reconhecimento do sentimento de pertencimento, sobretudo do sentimento identidário de classe social. Embora não se possa fazer da cultura genuinamente popular – e da Capoeira Angola em seu interior – um apanágio para todos os males da pós-modernidade, penso no acesso à Capoeira Angola como possibilidade de uma educação popular onde a reconstrução cultural reflete em si os signos do altruísmo. O processo de esportivização da Capoeira Regional a faz funcionar no sentido inverso. Obediente à ideologia que predestina um lugar - lá embaixo - para os que se comportam resignadamente, a Capoeira Regional ecoa das ideologias hegemônicas de onde se impõe uma linha demarcatória que identifica, separa e oprime.

Em “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche (1998) relata três transformações do espírito: como o espírito se transforma em camelo; o camelo em leão; e, finalmente, o leão em criança. O camelo representa a humildade, a submissão, o saber suportar com paciência as pesadas cargas. O leão representa o homem crítico, como niilista ativo que destrói os valores estabelecidos, que quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto. E a criança representa a inocência, o jogo, o brinquedo. É o sim radical ao mundo dionisíaco. O espírito, transformado em criança, quer agora a sua vontade; o que perdeu o mundo quer o mundo. Essa criança é o malandro do samba, é o angoleiro mandingueiro, em metáfora do “Super-homem” nietzschiano.

Adeus, vamos s´imbora

Ao longo deste artigo apresentei de forma breve algumas questões que procurei discutir durante o ano de 2007 em minha pesquisa no PDE, a saber: Por que a Capoeira tem que estar na escola? De qual Capoeira a escola necessita? Quais as relações travadas historicamente entre EF, sociedade e Capoeira? Meus estudos indicaram a existência de tensões localizadas entre os ardis reificantes da sociedade pós-moderna/pós-industrial e o potencial pedagógico da Capoeira Angola, como expressão histórica e cultural de luta e resistência.

Em 2008, os procedimentos pedagógicos adotados na fase de implementação oportunizaram um diálogo entre as reflexões circunscritas à minha pesquisa e as evidências apresentadas pelos educandos. A vivência concreta dos princípios afro-brasileiros presentes na tradição angoleira fortaleceu a tese inicial de que a Capoeira Angola pode constituir-se em espaço profícuo ao desenvolvimento de modos tipicamente humanos de ser e de pensar lúdica e criticamente, campo fértil para a consciência e a emancipação.

A metodologia utilizada na fase de implementação constou de aulas expositivas e práticas que culminaram em um total de três meses letivos, duas vezes por semana, no período regular de aulas. Aos sábados eram realizadas aulas de reforço com alunos oriundos das quatro turmas beneficiadas pela pesquisa: 1ºJ, 1ºK, 1ºL e 1ºM.  Durante as aulas fiz uma abordagem histórica e conceitual da capoeiragem que privilegiou sua herança cultural enquanto dança, luta, jogo e filosofia na construção da identidade cultural afro-brasileira em contraponto com a ressignificação política da Capoeira em Capoeira Regional. Obediente à ideologia que predestina um lugar - lá embaixo - para os que se comportam resignadamente, a Capoeira Regional ecoa das ideologias hegemônicas de onde se impõe uma linha demarcatória que identifica, separa e oprime.

Orientei meu trabalho no sentido de propiciar ao educando a compreensão da Capoeira Angola como herança privilegiada da africanidade no Brasil e referência para construção de novas abordagens epistemológicas na EF numa perspectiva pedagógica crítica e emancipatória. Privilegiei os seguintes conteúdos: a) surgimento da Capoeira no contexto específico da presença do povo africano no Brasil; b) conceituação, filosofia e características da capoeiragem; c) aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais da dicotomização da Capoeira em Angola e Regional; d) fundamentos técnicos da Capoeira Angola (movimentos, golpes, cantos, toques, jogo e ritualística); e) identidade cultural afro-descendente; f) ancestralidade e cultura popular; g) expressão corporal da Capoeira Angola; h) ritualística da Capoeira Angola; i) problemática da Capoeira na pós-modernidade e suas relações com a EF, a indústria cultural globalizada e o processo de esportivização da cultura corporal de movimento.

A metodologia utilizada ensejou um esforço para ecoar cada vez mais alto a oralidade dos antigos mestres num fazer pedagógico que tem como essência a alteridade, a empatia e a perspectiva crítica de superação das desigualdades sociais. Foram lidos e discutidos textos específicos, apresentados slides em power point e assistidos ao filme “Amistad” e ao documentário “Pastinha, uma vida pela Capoeira”. Tivemos ainda duas palestras e uma aula com o Mestre Pedro. Na avaliação do(s) aluno(s), considerei a participação ativa do(s) mesmos(s) nas vivências das aulas e sua contribuição no jogo de roda, nas discussões, leituras, sínteses, seminários e elaboração da apresentação em power point.

A guisa de poder concluir, reafirmo que embora a cultura afro-descendente não seja um apanágio para todos os males causados pela sociedade pós-moderna/pós-industrial, admitidas as restrições impostas à cultura popular pela sociedade da globalização, a Capoeira Angola, inserida nos processos de formação cultural popular, pode assumir a tarefa estratégica de promover a conscientização do educando mediante uma pedagogia para a EF compromissada com a construção de uma sociedade justa, lúdica, não aligeirada e, portanto, diferente da sociedade na qual nos encontramos.

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Publicado por: Giancarlo

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